Ailton Krenak: "Cresci como um refugiado no meu próprio país"

Primeiro indígena da Academia Brasileira de Letras reflete sobre os direitos originários, atuação do estado e o significado do Dia dos Povos Indígenas

Abr 18, 2025 - 10:04
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Ailton Krenak: "Cresci como um refugiado no meu próprio país"

O escritor Ailton Krenak, primeiro indígena da Academia Brasileira de Letras (ABL), afirma que a relação do Estado brasileiro com os povos originários é de "morde e assopra", pois há ambiguidade entre a valorização da diversidade e a garantia de direitos, sobretudo a demarcação de terras indígenas. Ele reconhece que houve avanços importantes nos últimos anos, como o aumento do número de indígenas no ensino superior e em espaços de decisão, mas Ailton ressalta que a violência ainda está presentes nos territórios.

"Podia chamar isso de inclusão, mas ela é uma inclusão excludente, pois ela concede determinados direitos civis, digamos assim, acesso a alguns direitos de política pública, mas o essencial para os povos indígenas são os seus territórios. Os nossos parentes munduruku, os guarani-kaiowá, os kaiapós e os yanomamis estão toda hora mostrando as agressões e os ataques que os seus territórios estão sofrendo pelo garimpo, pela invasão do agronegócio", afirma o escritor em entrevista ao Correio neste sábado (19/4), data que marca o Dia dos Povos Indígenas.

Ailton Krenak também destacou a necessidade de garantir a participação dos povos indígenas na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em novembro, em Belém (PA). "Vamos promover a conferência em Belém, ao mesmo tempo em que estão atuando na entrada de uma atividade inadmissível na região do Tapajós, que é a extração de petróleo na Margem Equatorial. "Tirar petróleo na Amazônia é veneno. Não pode", frisa.

  • A Margem Equatorial fica localizada próxima entre os estados do Amapá e Rio Grande do Norte
    A Margem Equatorial fica localizada próxima entre os estados do Amapá e Rio Grande do Norte Divulgação/Petrobras
  • A Margem Equatorial (MEq) é o nome dado à região costeira do Norte do Brasil e se estende por mais de 2.200 km ao longo da costa. A área tem cinco bacias de petróleo: Foz do Amazonas, Pará-Maranhão, Barreirinhas, Ceará e Potiguar
    A Margem Equatorial (MEq) é o nome dado à região costeira do Norte do Brasil e se estende por mais de 2.200 km ao longo da costa. A área tem cinco bacias de petróleo: Foz do Amazonas, Pará-Maranhão, Barreirinhas, Ceará e Potiguar Divulgação/Petrobras
  • Em novembro de 2024, o presidente Lula (PT) recebeu o prefeito reeleito de Manaus, David Almeida, e senadores do Amazonas para discutir temas da região, como a exploração da Margem Equatorial
    Em novembro de 2024, o presidente Lula (PT) recebeu o prefeito reeleito de Manaus, David Almeida, e senadores do Amazonas para discutir temas da região, como a exploração da Margem Equatorial Ricardo Stuckert/PR
  • Na terça-feira (11/3), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aprovou o plano da Petrobras de limpeza da sonda que poderá ser utilizada na perfuração na Foz do Rio Amazonas, caso haja permissão para pesquisa de petróleo na área
    Na terça-feira (11/3), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aprovou o plano da Petrobras de limpeza da sonda que poderá ser utilizada na perfuração na Foz do Rio Amazonas, caso haja permissão para pesquisa de petróleo na área Vinicius Mendonça/Ibama
  • Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente do Senado, defendeu a atividade exploratória de forma responsável e sustentável
    Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente do Senado, defendeu a atividade exploratória de forma responsável e sustentável Jefferson Rudy/Agência Senado
  • A ministra Marina Silva diz que o papel do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente é garantir que não tenha nenhuma exploração prejudicial para o meio ambiente, mas entende que a exploração de combustíveis fósseis ainda é uma tendência mundial
    A ministra Marina Silva diz que o papel do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente é garantir que não tenha nenhuma exploração prejudicial para o meio ambiente, mas entende que a exploração de combustíveis fósseis ainda é uma tendência mundial Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • Petrobras diz que já perfurou mais de mil poços na Margem Equatorial. O primeiro poço exploratório na região, feito para investigar o potencial, se localiza a mais de 160 km do ponto mais próximo da costa e a mais de 500 km da foz do Rio Amazonas
    Petrobras diz que já perfurou mais de mil poços na Margem Equatorial. O primeiro poço exploratório na região, feito para investigar o potencial, se localiza a mais de 160 km do ponto mais próximo da costa e a mais de 500 km da foz do Rio Amazonas Divulgação/Petrobras
  • O presidente Lula afirmou que o Ibama precisa autorizar a Petrobras a perfurar poços em busca de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial, no litoral do Amapá
    O presidente Lula afirmou que o Ibama precisa autorizar a Petrobras a perfurar poços em busca de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial, no litoral do Amapá Ricardo Stuckert / PR
  • Em 2023, o Ibama negou o pedido da Petrobras para realizar atividade de perfuração marítima na bacia da Foz do Amazonas por
    Em 2023, o Ibama negou o pedido da Petrobras para realizar atividade de perfuração marítima na bacia da Foz do Amazonas por "inconsistências técnicas" para a operação segura em uma nova área exploratória Fernando Frazão/Agencia Brasil
  • O Observatório do Clima afirmou que a pressão do presidente Lula por licença na Foz do Amazonas ameaça liderança do Brasil na COP30, que será realizada em novembro, em Belém, no Pará
    O Observatório do Clima afirmou que a pressão do presidente Lula por licença na Foz do Amazonas ameaça liderança do Brasil na COP30, que será realizada em novembro, em Belém, no Pará Valdo virgo

O escritor indígena lembrou, ainda, das violações sofridas pelo povo krenak durante a ditadura militar e disse que vê com preocupação a tentativa de expropriar os territórios tradicionais, pois, segundo ele, esse é o primeiro passo para jogar os povos originários em uma condição de refugiados. "Às vezes eu digo que eu cresci como um refugiado dentro do meu próprio país", cita.

Dia dos Povos Indígenas

O imortal da Academia Brasileira de Letras citou que, por muitos anos, o dia 19 de abril era celebrado como "Dia do Índio" e isso serviu de escárnio e representação genérica e preconceituosa dos povos originários. A renomeação da data para Dia dos Povos Indígenas é resultado da aprovação do Projeto de Lei nº 5.466/2019, de autoria da presidente da Funai, Joenia Wapichana, enquanto exercia o mandato de deputada federal.

A mudança, aprovada pelo Congresso em 2022, teve o objetivo de representar de maneira mais apropriada a diversidade cultural e étnica dos povos originários. "Impressionante que esse equívoco permaneceu na história até outro dia e agora a gente conseguiu transmutar o sentido da data, porque é o dia da luta e resistência dos povos originários", diz Krenak.

Ailton Krenak é autor de Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e Futuro ancestral (2022), Kuján e os meninos sabidos (2024), entre outras obras.

Assista à entrevista na íntegra e leia logo abaixo:

O senhor sempre tem falado que nós não podemos nos render à narrativa do fim do mundo, porque sonhar é um modo de lutar, sonhar é fundamental. Então, o que os povos indígenas têm a nos ensinar sobre isso?

Essa menção à importância do sonho é importante porque nos remete aos povos tradicionais, os povos originários e também aos povos da diáspora. A gente sabe que a matriz cultural africana valoriza muito o sonho e isso está relacionado com a ancestralidade, com a identidade desses povos que se remete a uma cosmovisão em que a vida não é encaixada nessa realidade do cotidiano.

Entendam que o cotidiano é uma das representações da realidade. Mas a luta, a resistência, a persistência desses povos em ficar vivo no mundo onde eles são mal recebidos, são criadas por forças que vem de outros outros mundos, que vem do sonho.

No meu caso, na minha experiência cultural e na minha compreensão da vida, nós podemos escapar desse bullying constante da violência colonial exatamente por meio do sonho. Como diz o Davi Kopenawa Yanomami, os brancos sonham consigo mesmo. Eles não conseguem sonhar com outras coisas. E o Davi Yanomami também diz que esse mundo da mercadoria é obsessivo e vive pensando em coisas.

Ele não pensa nos outros seres humanos e tem dificuldade de pensar também em outros seres não humanos, como a floresta, os rios, as paisagens que nós amamos e que nós queremos preservar para a gente viver num mundo saudável, onde tem ar bom para respirar, tem o contato cotidiano com a terra. Esse convívio com a terra, com o pé no chão, é o que possibilita uma aprendizagem que nós temos necessidade, que é pisar suavemente na terra.

No ano passado, o senhor protagonizou um feito histórico ao ser eleito o primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras (ABL). Para o senhor, o que esse momento representa e também o que a sua presença na ABL significa para os povos indígenas do Brasil?

Essa minha passagem pela Academia, que foi recente, continua gerando muito interesse das pessoas, talvez pelo fato de ser mesmo a novidade naquela casa, que é a casa da lusofonia, quer dizer, a casa que faz o culto à língua portuguesa. A presença dos povos indígenas com a minha admissão na academia significa uma mudança muito grande, porque ela introduz uma sinfonia de línguas, de povos originários, no lugar onde a língua portuguesa reinava.

Isso cria uma uma reacomodação das pedras, digamos assim. Eu não vou à Academia fazer um elogio da língua portuguesa porque nós sabemos que ela é a língua da colonização. Reforçar a presença dos povos indígenas nesses espaços eleva a condição desses povos, dessas etnias. Há um certo equilíbrio no convívio com as outras culturas e com os outros povos que também formam a sociedade brasileira.

Eu acho muito importante que as línguas indígenas tenham o espaço que merecem. E esse espaço começa pela difusão dessas línguas nativas que, no Brasil, elas estão expressando o universo de 305 etnias. São estimados mais de 270 diferentes línguas ou derivados de grandes troncos linguísticos como o tupi e o macro-jê. Esse universo de línguas, de línguas originárias, é muito rico.

E muitos desses conhecimentos não podem ser transmitidos em inglês, português ou francês. Eles são expressos nas línguas originárias porque eles carregam um código que eu acho que é um código mesmo da memória, da criação do mundo.

São povos que conseguem narrar eventos que deram origem à floresta. Você mesma já deve ter tido a oportunidade de ler alguns desses textos antigos com algumas dessas narrativas. Recomendo o livro A Queda do Céu, do Davi Kopenawa, que é uma cosmovisão yanomami. Mesmo lá na Academia essa obra é referenciada como uma alta literatura.

No discurso de posse na ABL o senhor ressaltou essa prioridade de dar visibilidade para as línguas indígenas e mencionou a ideia de criar uma espécie de biblioteca. O senhor pode comentar um pouco sobre isso? Como vai funcionar?

O meu discurso foi sem texto, ele foi feito à maneira das minhas comunicações pela oralidade e eu anunciei que eu ia criar uma plataforma de línguas indígenas. E essa plataforma avançou nesse período, desde que eu tomei posse até agora. Avançou na definição da tecnologia que a gente vai ter que acessar. Uma plataforma digital em que as pessoas podem postar na sua própria língua nativa as narrativas e os textos. E nós vamos ter a função de organizar essas informações.

A plataforma já tem nome, que é Língua mãe. E ela já nasce com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, quer dizer, a minha cadeira é a plataforma de línguas nativas que tem o nome de Língua mãe.

A gente está trabalhando com essa tecnologia para poder fazer o registro das línguas. Não vai ser uma uma biblioteca no sentido amplo, porque não vai dispor de todas as informações sobre as línguas indígenas. Ela vai criar um registro dessa diversidade linguística e disponibilizar acesso para que as pessoas possam ouvir a dicção, a fonética dessas línguas, entrar em contato com essa diversidade e se quiserem, a gente encaminha eles para aprofundar o conhecimento sobre uma ou outra língua ou sobre todas as línguas que queiram saber.

Na verdade, nem o papa seria capaz de falar todas as línguas nativas do Brasil. Os papas costumam ser poliglotas, falam 10, 15, 20, 30 línguas e seria bom que os que sucederem o papa Francisco pudessem incluir no repertório as línguas nativas daqui da América do Sul, do Brasil.

Apesar de nós sermos um país de uma vasta diversidade linguística, nós também somos um país que reprimiu duramente essa expressão das línguas a ponto de só agora ser admitido que se inclua no registro civil das pessoas indígenas a etnia a que ele pertence. Só agora eu posso acrescentar no meu registro de nascimento a etnia Krenak. Eu usei um outro dispositivo. Eu relacionei o meu nome com o meu povo desde sempre.

Quando eu fiz a minha participação no debate na Constituinte em 1987, que resultou na nossa Constituição de 1988, ali foi anunciado que aquele jovem tinha um nome e ele tinha um povo. O nome é Ailton e o povo é Krenak. Isso já foi uma certa ação de rebeldia. Acho que isso é muito importante e fico feliz de ver uma juventude imensa. Se você olhar o Acampamento Terra Livre (ALT) desse ano vai ver que tinham muitas crianças, jovens e alguns ancião. O grande ancião que estava presente ali era o nosso líder Raoni Metuktire.

O Raoni é essa pessoa destacada ao longo da nossa história recente, como uma pessoa que inspira a perseverar na cultura e defender os direitos dos povos indígenas de uma maneira intransigente. Para mim, ele é o meu ídolo. Eu fico feliz dele estar entre nós frequentando a ATL com crianças, com mulheres e muitos jovens. Eu acredito que são esses jovens e essas crianças que vão dar continuidade a esse pleito dos povos originários em alcançar reconhecimento na sociedade brasileira.

Nos últimos anos, os povos indígenas conquistaram avanços significativos. Por exemplo, eles estão mais presentes em espaços de poder. Hoje nós temos o Ministério dos Povos Indígenas, a Funai é liderada por uma indígena também. Só que ao mesmo tempo, as demarcações de terras indígenas caminham a passos lentos e também o governo federal, inclusive o próprio presidente Lula, tem demonstrado a intenção de avançar com a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Como o senhor avalia esse cenário, especialmente no ano em que o Brasil vai sediar a COP30?

Sobre a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, é como se mordesse e soprasse. É um morde e assopra. Essa expressão pode representar bem a ambiguidade de um estado que ao mesmo tempo reconhece a diversidade linguística, estimula aspectos da cultura, promove o acesso dos jovens indígenas das universidades, que se estima que hoje a gente tem em torno de 50 mil indígenas no ensino superior no Brasil, o que é uma verdadeira revolução, e nos costumes também, porque esses jovens estão saindo das suas aldeias para ir para a Unicamp, para a universidade de São Carlos, para vir aqui para a UFMG, em Minas Gerais.

A UnB tem um grande número de estudantes indígenas, alguns deles já no mestrado ou no doutorado Então é muito novo, é muito nova essa inserção das pessoas indígenas amplamente, não uma pessoa ou outra, mas coletivos indígenas em lugares de representação da sociedade onde nós não acessávamos antes. Digamos que até a década de 1990 você não ia encontrar esses índices.

Mas ao mesmo tempo, esses povos estão sendo expulsos dos seus territórios de origem. A gente podia chamar isso de inclusão, mas ela é uma inclusão excludente, pois concede determinados direitos civis, digamos assim, acesso a alguns direitos de política pública, mas o essencial para os povos indígenas são os seus territórios.

Os nossos parentes munduruku, os guarani-kaiowá, os kaiapó, os yanomamis estão toda hora mostrando as agressões e os ataques que os seus territórios estão sofrendo pelo garimpo, pela invasão do agronegócio e infraestruturas como essa que a Alessandra Korap, do povo munduruku, denuncia dizendo ao ministro Gilmar Mendes que ele não pode negociar os direitos territoriais dos povos indígenas.

Denunciar essa tentativa de contrariar o princípio da Constituição e fazer uma média com a história do marco temporal. Isso me anima também, porque mostra que os povos indígenas não vão aceitar facilmente essa orientação que o Estado brasileiro tenta impor à vida dos povos indígenas, que são direitos civis em troca dos territórios. Parece que é isso que está sendo proposto. E nós não aceitamos. Isso é uma absurda interpretação do direito congênito, que é o direito dos povos que nasceram aqui, são originários daqui, esses direitos são inegociáveis.

A queda de braço que está tendo em torno dessa questão da COP 30 é exatamente por isso. Vamos promover a conferência em Belém, ao mesmo tempo em que estão atuando na entrada de uma atividade inadmissível na região do Tapajos, que é a extração de petróleo na Margem Equatorial. Isso é um eufemismo, não tem nada de margem equatorial. Tirar petróleo na Amazônia é veneno. Não pode.

Uma das pautas do Acampamento Terra Livre foi justamente reivindicar o protagonismo dos povos indígenas na COP30. As lideranças indígenas dizem que não tem como falar de COP30 sem a participação dos indígenas. Como o senhor avalia esse movimento?

Eu acredito que o governo brasileiro deveria ter se antecipado quando anunciou o programa da COP30 e anunciado que os povos originários da bacia amazônica, de toda a bacia amazônica —  o que significa que nove países —  estariam com a segunda presidência da COP30.

Se o governo e a diplomacia brasileira tivessem trabalhado nesse sentido, a gente estaria empoderando a voz dos povos originários e diminuindo os conflitos que estão previstos para acontecer na COP30, porque se os povos indígenas ficarem fora, se eles ficarem à margem, nós vamos ter muita discórdia e não vai sair um documento consensual da COP30.

É uma pena que além de todos os outros prejuízos, tem grandes governos do mundo que não virão para a COP30. Os Estados Unidos estão sabotando essa conferência. E tem outros países europeus também que eu acho que estão no mesmo barco.

Seria importante que o governo brasileiro, em conjunto com os governos da bacia amazônica, se esforçassem para assegurar uma participação ativa dos povos indígenas. Não precisa ter assento para todos os povos indígenas do país inteiro, mas a representação dos povos da Amazônia vi assegurar que as vozes indígenas plurais da América do Sul estejam no debate. É isso que é importante, é uma visão ampla, não essa visão medíocre que está inspirando a agenda da COP30.

Recentemente, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região condenou o Estado brasileiro pelas violações cometidas contra o povo Krenak durante a ditadura militar. Como o senhor avalia essa decisão?

Essa decisão retorna a uma decisão que já foi tomada e já foi anunciada cerca de 4 ou 5 anos atrás e que não teve nenhuma consequência porque tentaram embargar a execução dessa ação favorável ao povo Krenak.

Além dos Krenak, outras pessoas de outras etnias, como os nossos irmãos maxakali, que são nossos vizinhos do Vale do Mucurí, eles também sofreram a violência da ditadura militar nas suas vidas, destroçando as suas organizações tradicionais e isso está relatado inclusive num filme feito por um um indígena maxakali e esse filme tem o título de GRIN, que significa Guarda Rural Indígena. Essa obra traz à memória o período em que eles foram forçados a se tornar uma milícia sob o comando de um militar daqui de Minas Gerais, um capitão que foi condenado por essa ação pela prática de genocídio. No entanto, ele morreu velhinho e não sofreu nenhuma penalidade.

Tem vários povos que foram afetados violentamente por essa experiência aqui em Minas Gerais no período da ditadura e é por isso que algumas pessoas pedem a criação da Comisão Nacional Indígena da Verdade para rever os crimes da ditadura contra povos indígenas, para especificar quais foram os atos de abuso. Eu não sei se a gente vai avançar para essa conquista. Tomara que sim.

E como foi crescer nesse período de ditadura militar?

Se você perguntar a qualquer pessoa que tem mais de 60 anos e que sobreviveu, você vai ouvir relatos de trauma. De ver seus parentes sendo espancados, expulsos, presos, ameaçados e perseguidos. E isso deixa uma marca muito grande, uma marca indelével no espírito das pessoas. É impossível alguém passar por uma experiência tão ruim e continuar vivendo bem. A ideia do bem-viver com tanto trauma é quase que algo impossível.

Mas a gente tem que se esforçar para superar esses tempos de sofrimento e de violência. É interessante a gente ver que outros povos em outras regiões do planeta também passam por privação, alguns têm seus territórios destruídos, totalmente devastados. Hoje o Brasil já recebe refugiados de vários lugares do mundo. Esses refugiados que chegam aqui é porque eles estão sofrendo nos seus territórios de origem.

Por isso que me preocupa essa tentativa do Estado brasileiro de expropriar os territórios indígenas. Esse é o primeiro passo para jogar a gente em uma condição de refugiados. Às vezes eu digo que eu cresci como um refugiado dentro do meu próprio país.

Qual é o significado e a importância do Dia dos Povos Indígenas e qual mensagem o senhor gostaria de deixar para a sociedade nessa data?

A gente conseguiu também melhorar bastante a compreensão do que significa o 19 de abril. Antes ele era sumariamente celebrado como o dia do índio. É como o dia da árvore, o dia da bandeira, dia de coisas.
Durante muito tempo isso serviu como escárnio. Era uma generalidade, era um índio genérico comemorado no dia 19 de abril. Impressionante que esse equívoco permaneceu na história até outro dia e agora a gente conseguiu transmutar o sentido desse dia, porque ele é o dia da luta e resistência dos povos originários.

E a diversidade étnica se afirma a partir desses eventos que historicamente representavam quase que uma vergonha, ao invés de celebrar, ele era um dia de envergonhamento. Agora eu acho que a gente está começando a construir esse lugar de celebrar a nossa diversidade a partir de lutas, são lutas sociais.

O ATL foi atacado pela polícia do Congresso e pela polícia do Distrito Federal, o que envergonha o governador e envergonha também a sociedade brasiliense de permitir que as suas polícias atuem de uma maneira tão brutal contra mulheres e crianças indígenas que levaram gás de pimenta no rosto enquanto caminhavam pacificamente na capital do nosso país.

Eu preferia não falar isso em uma matéria que vai celebrar o Dia dos Povos Indígenas. Mas a gente não pode deixar passar em branco a violência policial que tomou conta das ruas de Brasília para impedir o livre exercício do manifestação indígena.

Essa mesma polícia recebeu de braços abertos o pessoal que foi invadir Brasília no dia 8 de janeiro. Então, a mesma polícia que abraça os bolsonaristas joga a pimenta no rosto de crianças e mulheres indígenas. Será que é essa a polícia que Brasília quer ter?