A natureza autofágica do poder

A atual crise deve também ser vista como um bloqueio político-institucional no sistema político português, devido à ascensão de um partido de extrema-direita que pressiona qualquer acordo entre os dois maiores partidos.

Mar 21, 2025 - 07:46
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A natureza autofágica do poder

Muitos analistas e comentadores afirmaram que os portugueses não desejam a realização de novas eleições e que, por isso, os políticos foram irresponsáveis ao provocarem as eleições de 18 de Maio de 2025. Este acontecimento serve como mote ideal para analisar a natureza autofágica do poder político enquanto ente autónomo e desvinculado de qualquer contrato social ou de condicionamento externo, como a vontade geral ou do povo.

Uma análise séria e cuidada sobre a crise política portuguesa poderia evitar o lugar-comum, onde tudo se resume à responsabilidade dos actores políticos. Visto que é, também, importante procurar entender a funcionalidade do poder político e, sobretudo, as suas práticas nos bastidores. Ao seguir por esta via deixamos de alimentar a política espectáculo, que é feita através da encenação dos actores políticos, e que depois é sistematicamente reproduzida pelos media.

Esta crise político-eleitoral não deve ser apenas interpretada como um mero acto de irresponsabilidade dos políticos, mas, sim, como um bloqueio político-institucional no sistema político português, devido à ascensão de um partido de extrema-direita que pressiona qualquer acordo entre os dois maiores partidos.

O discurso da extrema-direita propaga a percepção de que os acordos servem, sobretudo, para assegurar os interesses do PS e do PSD. Este discurso tem sido eficiente e consegue assegurar o crescimento eleitoral dessa franja. Neste contexto, os partidos políticos tendem a desconfiar uns dos outros e não alimentam acordos (não escritos) que possam colocar em causa a sua posição no sistema partidário.

Quando um analista solicita um certo grau de responsabilidade aos políticos portugueses está, simplesmente, a afirmar que os políticos devem confiar nos outros actores políticos, independentemente do respectivo partido. Sem entender que essa confiança já não existe como no passado, dado o custo político, que é altíssimo, ninguém estará disponível para colocar em causa o seu partido em prol da salvação do regime.

Por isso, a demissão de António Costa, à data, poupou o regime de um desgaste, mas o PSD não permitiu, de forma alguma, que o PS apresentasse a substituição de António Costa no cargo de primeiro-ministro. Assim, é evidente que o PS não aceitaria a substituição de Luís Montenegro por outra figura.

Não estamos, deste modo, perante uma crise de irresponsabilidade política, mas, sim, de desconfiança política entre os actores políticos, que poderá provocar uma ruptura institucional, com consequência no funcionamento estável do regime político, através de ciclos curtos de governação (que já está a ser associada à I República). Esta mutação é o prenúncio de uma destruição autofágica que começa com o vírus da desconfiança que se alastra por todo corpo político até à sua morte final.