70% das pacientes com câncer passam por término de relacionamentos amorosos

Para especialistas, o comportamento dos homens que se distanciam de suas parceiras doentes está ligado à insegurança e à imaturidade emocional

Fev 17, 2025 - 10:09
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70% das pacientes com câncer passam por término de relacionamentos amorosos

Desde a infância, mulheres são ensinadas a cuidar, seja dos maridos, dos filhos, da casa ou da família, mas, ainda assim, são abandonadas em momentos de fragilidade, como durante o tratamento de uma doença. O Correio conversou com mulheres que, após o diagnóstico e durante o tratamento do câncer de mama, foram rejeitadas, negligenciadas ou até mesmo abandonadas por seus parceiros. Essa situação é mais comum do que se imagina, não só no câncer de mama, mas em várias outras doenças. Esse abandono, além de doloroso, pode prejudicar seriamente a recuperação, devido ao impacto emocional. A pergunta que não quer calar: quando adoecem, quem cuida dessas mulheres?

Uma pesquisa de 2023 da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) apontou que 70% das mulheres em tratamento oncológico passam pelo término de uma relação amorosa, ou seja, sete em cada 10 mulheres são impactadas pelo abandono quando descobrem um câncer.

Fora do Brasil, a situação é semelhante para as mulheres que adoecem. De acordo com um estudo das universidades de Stanford e Utah, nos Estados Unidos, em conjunto com o Centro de Pesquisas Seattle Cancer Care Alliance, mulheres têm seis vezes mais chance de serem abandonadas pelos parceiros após descobrirem uma doença grave e ameaçadora à vida.

"Ouvir que ele não poderia cuidar de mim e que ele não dava conta de ficar com uma mulher com um peito só foi mais forte do que o diagnóstico do câncer." Lourdes Capitulino faz parte da estatística. Aos 42 anos, teve a vida completamente abalada por um câncer de mama e pelo abandono emocional do parceiro, com quem passou 25 anos e teve três filhos.

Quando foi diagnosticada, em 2004, Lourdes conta que teve o apoio apenas dos filhos para aguentar a mastectomia, as seis sessões de quimioterapia e outras 33 sessões de radioterapia. "Minha filha caçula ainda era adolescente, foram eles que me ajudaram. O meu ex-marido nunca apareceu em nenhuma consulta, em nenhuma sessão de quimio. Era uma vizinha que me levava para o Hospital de Base para fazer as sessões. Eu pagava pelo combustível e ela me dava carona. Foi muito duro", lembra. "Eu via aquelas mulheres no hospital, todas parecidas comigo e com histórias parecidas, e aquilo me dava forças, pensava: 'Se elas estão vencendo, eu também vou".

Apenas em 2011, Lourdes conseguiu a cirurgia de reconstrução da mama de maneira gratuita pelo Hospital Regional da Asa Norte e, com isso, participou de um ensaio fotográfico promovido pela ONG Recomeçar, para mulheres mastectomizadas. "Quando as fotos saíram, ele me ligou pedindo para voltar. Ele disse que na época estava com medo de eu morrer. Eu fiquei muito debilitada, parei tudo na minha vida, mas fui forte para vencer apenas com o apoio dos meus filhos", diz. "Hoje, eu consigo falar sobre isso, mas foi muito sofrido", lamenta. Depois de 20 anos, Lourdes diz que perdoa o ex-marido por toda a situação. "Eu perdoo ele, não guardo rancor, mas por mim, para eu ficar em paz comigo".

Recomeçar

A fundadora da ONG Recomeçar, Joana Jeker, comenta que, durante os 14 anos do projeto, diversas mulheres na mesma situação de Lourdes apareceram pedindo ajuda. "Nossa atuação é, principalmente, nas articulações política e públicas para garantir todos os processos que a mulher passa na jornada do tratamento oncológico. Também oferecemos apoio emocional e psicológico para essas mulheres que passam por situações similares à da Lourdes", explica.

Alessandra José, de 45 anos, que trabalha com serviços gerais, também viveu o abandono. "Eu recebi o diagnóstico em dezembro de 2024. Não tive o amparo do SUS. Tive que correr e resolver tudo por conta própria. Eu queria fazer a cirurgia o quanto antes", conta. Após a cirurgia, ela voltou para casa, mas se deparou com um lar diferente. "Quando fiz a cirurgia, cheguei em casa e não tinha nada, só um colchão, as minhas coisas e as da minha filha. Meu marido desapareceu." A dor da doença se somou à ausência do marido, que, além de abandonar a casa, deixou Alessandra sozinha para enfrentar o pior momento de sua vida.

O impacto emocional foi profundo para Alessandra, principalmente depois de descobrir que o ex-marido já estava com outra mulher. "Fiquei sabendo que ele estava com outra. Não fui negligenciada apenas pela ausência. Ele estava um dia comigo na consulta e no outro sumiu", desabafa. Para ela, a situação foi mais do que uma simples separação. "Eu era uma mulher extremamente vaidosa. Foi um choque perder o cabelo, a sobrancelha. Ele me matou antes de saber se eu poderia sobreviver ou não à doença."

Alessandra José, de 45 anos, durante o tratamento de câncer
Alessandra José, de 45 anos, durante o tratamento de câncer(foto: Arquivo pessoal)

Alessandra ainda está em tratamento, tendo feito a última sessão de quimioterapia há apenas algumas semanas. Ela continua firme, enfrentando não só a batalha contra a doença, mas também o abandono e a solidão que se seguiram. "Minha vida foi revirada de cabeça para baixo."

Imaturidade

A psicóloga Karine Figueiredo explica que o abandono em situações de doença tem a ver com a falta de maturidade emocional. "Alguns homens não conseguem lidar com a responsabilidade de apoiar uma parceira doente", afirma. Ela também aponta que o medo da morte, associado ao sofrimento da doença, pode gerar um afastamento, assim como o egoísmo e a falta de compromisso com o relacionamento.

"A doença pode despertar neles a insegurança sobre a própria finitude, levando-os a se afastar para evitar o sofrimento. Em alguns casos, o relacionamento já era frágil e a doença apenas revelou a falta de compromisso genuíno. O tratamento pode alterar a aparência e a dinâmica do relacionamento e alguns homens, por imaturidade ou machismo, não sabem lidar com isso."

Karine sugere que, embora o impacto emocional machuque, a mulher precisa entender que "a culpa não é dela". A ajuda da família, amigos e grupos de apoio é necessária na recuperação física e emocional, assim como buscar suporte psicológico para lidar com o luto da separação.

Para o psicólogo e escritor Leandro Cunha, o comportamento dos homens que se distanciam de suas mulheres doentes pode estar ligado a inseguranças. "Alguns homens podem sentir-se inadequados ou distantes devido à dedicação intensa das mulheres à família, mas isso nunca justifica ações que causem sofrimento."

O psicólogo enfatiza que cada caso é único. No entanto, o mais importante para a mulher, diante do abandono, é priorizar o autocuidado e buscar apoio emocional. "É de suma importância que ela possa estabelecer limites claros e jamais permita que o comportamento do parceiro afete sua autoestima ou dignidade. A mulher é completa em si, caso o cônjuge deseje não aceitar isso, então ela precisa se priorizar", disse.

Ambos os psicólogos concordam que, apesar da dor do abandono, muitas mulheres conseguem se reerguer e encontrar força para superar o câncer e a separação. Figueiredo, por exemplo, sugere que as mulheres devem sentir o luto, mas não se deixar consumir por ele. "Muitas mulheres que passaram por essa situação relatam que, no fim, foi uma libertação. A doença revelou quem estava ao lado delas por amor e quem estava apenas por conveniência."

Direitos

Advogados de direito da família, Cláudia Rachid Machado e Bruno de Azevedo Machado destacam a complexidade jurídica que envolve o abandono de um companheiro diante de um diagnóstico de doença grave. "Não é apenas uma questão moral, mas pode ter implicações jurídicas também. Embora muitos entendam o fim de um relacionamento como um ato de liberdade pessoal, há circunstâncias em que essa ruptura abrupta pode gerar consequências legais, sobretudo quando há um vínculo sólido entre as partes, que justifique a busca por direitos, como pensão alimentícia, especialmente quando a parte abandonada está em situação de vulnerabilidade", explicam.

Os advogados sublinham que, em determinados casos, é possível buscar compensações jurídicas por danos morais. "Se comprovar que o casal mantinha uma relação estável e duradoura, com convivência pública, contínua e com objetivos comuns, é possível buscar o reconhecimento da união estável, mesmo após o rompimento." Além disso, a falta de apoio emocional, financeiro ou mesmo o abandono durante o enfrentamento de uma doença pode ser considerado um ato ilícito. "O rompimento abrupto e insensível em um momento de fragilidade extrema pode ser interpretado como um ato ilícito, passível de reparação."

*Estagiárias sob a supervisão de Eduardo Pinho