Uma nova (des)ordem mundial

Há menos de duas semanas escrevi um comentário a um post do Pedro onde expressava o meu pessimismo relativamente a Trump e às consequências para Portugal e a Europa. O Pedro respondia que analisava (naquele caso) na perspectiva de cidadão português e expressava optimismo na resiliência europeia. Não voltei à discussão mas talvez uma nova reflexão faça agora algum sentido. A verdade é que na presente estratégia trumpista (e da Heritage Foundation, que escreveu a estratégia, passo a passo) duas semanas são uma eternidade. Após a visita de Hegseth e Vance e algumas declarações extra de Trump, está neste momento claro qual a visão que a Casa Branca tem para o futuro. E passa por um elemento simples: a NATO é letra morta. Primeiro vieram as declarações de Hegseth (segundo algumas notícias, algo diluídas da brutalidade inicial), que a Europa não mais seria o foco dos EUA, assim explicando que a defesa da Europa estaria a cargo dos Europeus, caso isso não fosse claro. Depois chegou Vance, que se apresentou numa conferência sobre segurança, falou durante 18 minutos sem tocar no tema, atacou a democracia europeia, demonstrou menosprezo pelo continente, foi embora assim que terminou, recusou reunir-se com o chanceler alemão sob o pretexto de não ir ficar no cargo muito mais tempo, e reuniu-se com a extremista líder da AfD que não tem a menor hipótese de ser eleita chanceler. De permeio surgiu uma declaração de Trump himself em que dizia querer procurar um processo de desnuclearização juntamente com China e Rússia. Por fim, há o facto de Trump querer ir debater o futuro da Ucrânia com Putin sem levar os ucranianos ou europeus em conta. Ignorando o modo e focando-nos no conteúdo das mensagens, vemos aqui um tema essencial: os EUA vão dar prioridade a um mundo onde "might is right" ou, se quisermos, da lei do mais forte. Trump, já o sabemos, vê a política como transacional. Se não existe um quid pro quo - um toma lá dá cá em bom português - ele não está interessado. Trump quer portanto negociar com Putin, terminar a guerra, recuperar os recursos que puder, e deixar os ucranianos e europeus entregues a si mesmos. Note-se que nesta negociação Trump já disse que os ucranianos não podem esperar entrar na NATO nem recuperar as fronteiras de 2014 o que, mesmo que seja realista, é uma posição bizarra para iniciar negociações. Excepto quando olhamos para o interesse de Trump: que quer ele em troca? Recursos minerais. O futuro da Ucrânia não lhe interessa, já que ele quer apenas e só acesso aos recursos do país. Já disse a Zelenskií querer condicionar ajuda futura ao acesso aos depósitos minerais em terreno ucraniano (especialmente terras raras, lítio, urânio, etc.), os quais estão parcialmente em territórios controlados pela Rússia. Disse inclusivamente que quer "tomar posse" de 50% desses recursos, como se fosse um extorsionista mafioso a dar a volta por Manhattan no início do século XX a exigir dinheiro em troca de protecção. Desta forma a sua posição ideal será a de "oferecer" à Ucrânia protecção em troca de pagamento e oferecer à Rússia o levantamento de sanções (e reentrada nos palcos internacionais) em troca de acesso aos restantes minerais (que obviamente se manteriam em mãos russas). O resto - reconstrução do país, defesa das fronteiras, defesa europeia - fica nas mãos de quem lá vive. O próximo passo será certamente a remoção de bases do continente. Se as eleições alemãs não correrem de forma que lhe agrade, as bases no país poderão muito bem ser as priemiras. E quanto à desnuclearização? Do ponto de vista de Trump não faz sentido ter tantas armas nucleares quando existe redundância. Sendo uma mente que não entende subtileza, não percebe que as armas não foram todas criadas iguais e que muitas delas existem não para criar destruição mas para garantirem a possibilidade de retaliação ou "priemiro ataque" (First Strike). Se puder reduzir o arsenal nuclear, certamente que o irá fazer removendo muitas das armas do território europeu, assim ainda mais abrindo o flanco no continente. Além disso, um acordo deste género seria uma aceitação tácita que EUA, Rússia e China seriam as única potências internacionais e que cada uma teria a sua esfera de influência, na qual os EUA não interefeririam desde que possam beneficiar economicamente. Num tal cenário de desnuclearização (e note-se que a China provavelmente não reduziria o seu arsenal, antes o aumentaria para um nível semelhante ao americano e russo) os riscos de um conflito nuclear não diminuiriam (talvez se abrisse a possibilidade de vitória, algo impossível actualmente) e os riscos de conflito convencional seriam talvez superiores. E as probabilidades de China invadir Taiwan, EUA invadir Panamá e Gronelândia (o Canadá já duvido), e Rússia continuar a sua expansão para Oeste seriam muito elevadas. E no que ficamos na Europa? Bom, como o Pedro diz noutro comentário no post, abre a possibilidade para a Europa finalmente fazer aquilo que já deveria ter feito há décadas (e perdeu

Fev 17, 2025 - 12:53
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Uma nova (des)ordem mundial

Há menos de duas semanas escrevi um comentário a um post do Pedro onde expressava o meu pessimismo relativamente a Trump e às consequências para Portugal e a Europa. O Pedro respondia que analisava (naquele caso) na perspectiva de cidadão português e expressava optimismo na resiliência europeia. Não voltei à discussão mas talvez uma nova reflexão faça agora algum sentido.

A verdade é que na presente estratégia trumpista (e da Heritage Foundation, que escreveu a estratégia, passo a passo) duas semanas são uma eternidade. Após a visita de Hegseth e Vance e algumas declarações extra de Trump, está neste momento claro qual a visão que a Casa Branca tem para o futuro. E passa por um elemento simples: a NATO é letra morta.

Primeiro vieram as declarações de Hegseth (segundo algumas notícias, algo diluídas da brutalidade inicial), que a Europa não mais seria o foco dos EUA, assim explicando que a defesa da Europa estaria a cargo dos Europeus, caso isso não fosse claro. Depois chegou Vance, que se apresentou numa conferência sobre segurança, falou durante 18 minutos sem tocar no tema, atacou a democracia europeia, demonstrou menosprezo pelo continente, foi embora assim que terminou, recusou reunir-se com o chanceler alemão sob o pretexto de não ir ficar no cargo muito mais tempo, e reuniu-se com a extremista líder da AfD que não tem a menor hipótese de ser eleita chanceler. De permeio surgiu uma declaração de Trump himself em que dizia querer procurar um processo de desnuclearização juntamente com China e Rússia. Por fim, há o facto de Trump querer ir debater o futuro da Ucrânia com Putin sem levar os ucranianos ou europeus em conta.

Ignorando o modo e focando-nos no conteúdo das mensagens, vemos aqui um tema essencial: os EUA vão dar prioridade a um mundo onde "might is right" ou, se quisermos, da lei do mais forte. Trump, já o sabemos, vê a política como transacional. Se não existe um quid pro quo - um toma lá dá cá em bom português - ele não está interessado. Trump quer portanto negociar com Putin, terminar a guerra, recuperar os recursos que puder, e deixar os ucranianos e europeus entregues a si mesmos. Note-se que nesta negociação Trump já disse que os ucranianos não podem esperar entrar na NATO nem recuperar as fronteiras de 2014 o que, mesmo que seja realista, é uma posição bizarra para iniciar negociações.

Excepto quando olhamos para o interesse de Trump: que quer ele em troca? Recursos minerais. O futuro da Ucrânia não lhe interessa, já que ele quer apenas e só acesso aos recursos do país. Já disse a Zelenskií querer condicionar ajuda futura ao acesso aos depósitos minerais em terreno ucraniano (especialmente terras raras, lítio, urânio, etc.), os quais estão parcialmente em territórios controlados pela Rússia. Disse inclusivamente que quer "tomar posse" de 50% desses recursos, como se fosse um extorsionista mafioso a dar a volta por Manhattan no início do século XX a exigir dinheiro em troca de protecção. Desta forma a sua posição ideal será a de "oferecer" à Ucrânia protecção em troca de pagamento e oferecer à Rússia o levantamento de sanções (e reentrada nos palcos internacionais) em troca de acesso aos restantes minerais (que obviamente se manteriam em mãos russas). O resto - reconstrução do país, defesa das fronteiras, defesa europeia - fica nas mãos de quem lá vive. O próximo passo será certamente a remoção de bases do continente. Se as eleições alemãs não correrem de forma que lhe agrade, as bases no país poderão muito bem ser as priemiras.

E quanto à desnuclearização? Do ponto de vista de Trump não faz sentido ter tantas armas nucleares quando existe redundância. Sendo uma mente que não entende subtileza, não percebe que as armas não foram todas criadas iguais e que muitas delas existem não para criar destruição mas para garantirem a possibilidade de retaliação ou "priemiro ataque" (First Strike). Se puder reduzir o arsenal nuclear, certamente que o irá fazer removendo muitas das armas do território europeu, assim ainda mais abrindo o flanco no continente. Além disso, um acordo deste género seria uma aceitação tácita que EUA, Rússia e China seriam as única potências internacionais e que cada uma teria a sua esfera de influência, na qual os EUA não interefeririam desde que possam beneficiar economicamente. Num tal cenário de desnuclearização (e note-se que a China provavelmente não reduziria o seu arsenal, antes o aumentaria para um nível semelhante ao americano e russo) os riscos de um conflito nuclear não diminuiriam (talvez se abrisse a possibilidade de vitória, algo impossível actualmente) e os riscos de conflito convencional seriam talvez superiores. E as probabilidades de China invadir Taiwan, EUA invadir Panamá e Gronelândia (o Canadá já duvido), e Rússia continuar a sua expansão para Oeste seriam muito elevadas.

E no que ficamos na Europa? Bom, como o Pedro diz noutro comentário no post, abre a possibilidade para a Europa finalmente fazer aquilo que já deveria ter feito há décadas (e perdeu a oportunidade de fazer no período de Trump45) e criar um sistema de defesa europeu. Isto não significa simplesmente aumentar os gastos em defesa. Significa também criar todo um sistema para poder sustentar a defesa. Diz-se habitualmente que o Pentágono tem a maior burocracia do mundo mas, mesmo que seja excessiva, é indicativo daquilo que a Europa tem que construir. Tem que criar um conceito, um sistema de liderança, de harmonização entre as diferentes forças armadas europeias, uma burocracia, processos de investigação e desenvolvimento, fomentar a indústria de armamento europeia, criar processos de compras de equipamento (não só de armas mas também de material extra - tendas, rações, roupas, veículos, etc.) e implementar uma forma de treinos conjuntos e criação de doutrinas conjuntas. Tudo isto é uma oportunidade, mas também demora muito tempo, custa capital financeiro, político e humano. E é muito difícil de vendar a uma população a quem não se é sincero sobre os problemas reais.

E o capital financeiro traz-me a um ponto no qual discordo algo da posição do Pedro. Ele escreveu a certo ponto «a Europa resistiu a um milénio de guerras violentas, epidemias mortíferas, catástrofes de todo o género» no que dá a entender que a resiliência europeia pode resistir a tudo isto novamente. Nisto deixo as minhas reflexões: a "Europa" não sovreviveu a nada disso. A "Europa" não existia, era um aglomerado de reinos, impérios, terras vistas como bárbaras, múltiplas religiões (que mesmo quando cristãs não impediam o morticínio) e era, essencialmente, o território menos interessante do mundo conhecido. A Europa é uma zona geográfica com pouco interesse. Não é particularmente fértil, rica em minerais, recursos naturais de outros tipos (madeira, especiarias) e tem pouco espaço disponível. É por isso que não era tão invadida como o Norte de África ou a Ásia. Tudo mudou com o período de conquistas ultramarinas (aquilo a que se chama habitualmente de "Descobrimentos") e expoliação dos recursos locais. Com o fim da época colonial, sem o guarda-chuva americano, sem recursos naturais significativos, sobra apenas o avanço tecnológico que o continente ainda tem sobre a maioria do mundo e a sua população (que é provavelmente a mais educada).

Como avançar? Sinceramente, o facto de não termos muitos recursos naturais poderá ajudar, dado que Putin não terá interesse no território europeu. O seu interesse expansionista está em obter os territórios que ele reclama serem "historicamente russos" (na mesma lógica com que Portugal poderia reclamar Angola como "historicamente portuguesa") e em criar zonas tampão entre a Rússia e uma região que lhe seja hostil. Aqui, se Trump criar realmente um mundo de esferas de influência onde a Europa seja ignorada, Putin poderá de facto ter pouco interesse em invadir muito mais. Ainda assim, o melhor cenário talvez seja os Europeus regressarem a África, desta vez sem se darem a poses ou atitudes sobranceiras, e criar parcerias reais e honestas. A Europa poderia obter os recursos e a África apoio para o seu desenvolvimento económico, humano, e tecnológico. A tal oportunidade de que o Pedro falava.

O problema é o que acontece até lá. A união na Europa é ténue - para ser diplomático - e será difícil ver Orbán, Meloni, Wilders, potencialmente Le Pen, Fico, e outros a apoiar tais acções. Por outro lado, imaginando que de facto a Europa decidiria colocar tropas na Ucrânia, que aconteceria quando Putin atacasse? Talvez nem atacasse as forças europeias, apenas as ignorasse e atacasse as ucranianas. Que fariam os europeus? Responderiam? Atacariam território russo? Fariam como as tropas neerlandesas em 1995 em Srebrenica? E se as forças europeias fossem atacadas directamente? Que fariam sem a ameaça do envolvimento americano? Alguém julga que Trump sancionaria uma resposta americana à invocação do famos artigo 5 do tratado da NATO?

Por isso me mantenho pessimista. Trump não quer saber e deixou-o claro. Talvez esteja a esperar um pouco antes de apertar ainda mais porque não tem o seu gabinete completamente formado, mas não irá tardar muito. Os EUA irão recuar dos palcos mundiais e concentrar-se-ão apenas no seu quintal (continente americano) e no que poderão obter economicamente. O resto do mundo que trate de si. Não discuto aqui se isso faz sentido para os EUA embora aminha opinião seja fácil de discernir, mas apenas nas consequências. Os EUA a controlar América do Norte e do Sul, China a controlar o sudeste asiático e parte de África, Rússia a controlar a Europa de leste, parte do Médio Oriente e algumas zonas de África, e restos para países/regiões como Índia, Europa e quem mais o conseguir.

A saída para isto estará nos EUA e na capacidade dos americanos de evitarem tal destino (que lhes seria adverso), mas da forma como as coisas avançam, não sei se Trump e o seu aparelho lhes dará essa escolha. Só que isso é assunto para outro post e este já vai longo demais.