Uma cidade indigna num país ingovernável
A crise da habitação não aperta o cerco apenas à classe média, mas afeta sobretudo os mais vulneráveis. Em que altura nos tornámos completamente reféns do mercado imobiliário?


Se não queremos correr o risco de ver a crise da habitação banalizar-se e de ficarmos insensíveis perante o drama habitacional que grassa nas nossas cidades todos os dias, então, importa falar do caso de Ana Paula.
Falamos de uma mãe de três filhas que acaba de dar à luz um quarto filho. Falamos de Ana Paula, que sofreu um aumento de renda na casa onde vivia, tendo sido forçada a sair. Decidiu recorrer a uma barraca autoconstruída no município de Loures, mas, no ano passado, essa casa foi demolida pela Câmara de Loures, com um aviso prévio de 48 horas.
Resultado? Ana Paula ficou numa situação insustentável, em que corre o risco de perda dos filhos menores devido à falta de habitação. Se Ana Paula não tem casa, não é porque não queira ou não trabalhe, é porque é impossível arranjar uma habitação digna em Lisboa com baixos rendimentos.
Para agravar a situação, as operações de demolição do bairro, que estão em marcha, nem sequer tentam salvaguardar as famílias garantindo condições alternativas de habitação, como tem vindo a ser denunciado pelos vários coletivos que acompanham a situação no terreno.
Falamos de dezenas de famílias que foram empurradas para uma situação de habitação precária, sobrelotação ou ocupação, desprovidas de um direito fundamental, e que ainda enfrentam o risco de perderem as suas crianças.
A crise da habitação não aperta o cerco apenas à classe média, mas afeta sobretudo os mais vulneráveis. Em que altura nos tornámos completamente reféns do mercado imobiliário e deixámos as pessoas nas mãos do setor privado?
Quando será implementada uma estratégia agressiva e concertada que permita o crescimento do parque habitacional público, de modo a estar em linha com a média europeia? Em que altura se normalizou condenar famílias ao despejo e demolir bairros sem aviso e sem providenciar alternativas às pessoas?
Já há algum tempo que atingimos o patamar de uma cidade indigna, pouco solidária, cujos governantes viram as costas àqueles que mais necessitam de proteção social.
Os próximos resultados eleitorais podem ser a demonstração de que se os partidos do velho arco da governação continuarem a ser impotentes para resolver a crise, ou indiferentes a ela, então, iremos ser confrontados com um país ingovernável mais cedo do que esperávamos.