Two Falls: Nishu Takuatshina – Review

 Houve um tempo não muito distante onde eu tinha alguns problemas em compreender experiências narrativas interativas como jogos propriamente ditos. Preconceitos, falta de conhecimento, visões distintas de mundo, tudo isso que acabou caindo por terra assim que realmente me permiti pensar mais enquanto gabaritava os jogos da Telltale, da Quantic Dream e, posteriormente, uma …

Mai 4, 2025 - 08:17
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Two Falls: Nishu Takuatshina – Review



Houve um tempo não muito distante onde eu tinha alguns problemas em compreender experiências narrativas interativas como jogos propriamente ditos. Preconceitos, falta de conhecimento, visões distintas de mundo, tudo isso que acabou caindo por terra assim que realmente me permiti pensar mais enquanto gabaritava os jogos da Telltale, da Quantic Dream e, posteriormente, uma infinidade de visual novels, alguns deles dos quais fiz análises aqui pro site.

Com essa dificuldade cognitiva superada, encontrei ótimas propostas, outras nem tanto, mas fazia tempo que algo não me chamava atenção como Two Falls: Nishu Takuatshina, game ambientado em um Canadá de outros tempos que aborda toda uma temática dos primeiros contatos entre franceses e os povos nativo-americanos de uma forma intimista e poética.

Two Falls

Em meados do século XVII, conhecemos Jeanne, jovem francesa sobrevivente de um naufrágio da embarcação onde ela estava junto a alguns conterrâneos que buscavam novas oportunidades no novo mundo, acompanhada pelo fiel cão Capitaine e praticamente nenhum conhecimento sobre o chão onde estava pisando. Em choque pelo desastre do qual sobreviveu e apegada à sua fé cristã, ela precisa compreender como seguir em frente em um ambiente a ela hostil.

Do outro lado da história, está Maikan, um rapaz pertencente ao povo Innu descendente de curandeiros que, percebendo uma contaminação perturbadora em suas terras, parte corajosamente em busca de respostas pelo oeste e, fadado ao confronto com suas percepções de vida, descobrirá que o mundo é um pouco maior do que ele poderia imaginar.

Conhecer ambos não é simplesmente uma forma de contrapor dois personagens contrastantes, mas entender que o jogo irá intercalar a nossa perspectiva por estes dois pontos de vista ao longo dos seus breves capítulos. Inicialmente separados por diversos aspectos, nossa missão é guiá-los pelos perigos e mistérios que se apresentam de maneira crescente, fazendo escolhas pelos protagonistas que terão a capacidade de mudar os seus destinos.

Interpretar pessoas tão diferentes é um exercício bastante interessante, algo diferente de criar um avatar que nos representa em um ambiente fantástico. Dois deles ao mesmo tempo dá a oportunidade de a cada nova escolha, das mais banais às mais significativas, projetar não o que é necessariamente melhor segundo nossos valores éticos, mas sim entender toda a sua personalidade e se provocar para saber o que eles fariam ou diriam.

Um exemplo disso é a clara demonstração da fé de Jeanne, algo que está evidenciado em suas ações, preces e perspectivas de mundo. Mesmo que eu não seja um adepto da mesma religião, me decidi por sempre me apoiar na moral na qual ela teria sido criada para escolhas que poderiam ser determinantes, mesmo no sacrifício do que parecia mais seguro para a continuidade de NPCs ou para a solução de obstáculos.

Vivenciar os eventos de Two Falls: Nishu Takuatshina por prismas diferentes, e não por duas metades de um mesmo entendimento de mundo, é uma das possibilidades de abordagem do jogador, claro, mas partindo deste princípio, é fascinante mergulhar neste verdadeiro ensaio sobre criação de personagens, algo que se provou para mim o melhor extrato desta experiência.

A perspectiva em primeira pessoa, mesmo não necessariamente sendo a minha preferida para este gênero, se explica exatamente por esta construção, onde o ambiente vivo se desvela em todos os seus mistérios e encantos, mas também em todas as limitações humanas. A exploração linear em formato de investigação também trabalha na promoção deste sentimento de incompletude.

A interação por meio de ícones é, contudo, bastante limitante, e são poucas as vezes onde nos sentimos desafiados a entender o que fazer e como agir. Quem espera uma estrutura baseada em puzzles que remeta a adventure games mais tradicionais pode acabar se decepcionando com o modelo bem mais simples de ação do game, cujas maiores bifurcações estão de fato nas reações a eventos, não a elementos contextuais, o que pode, de certa forma, diminuir a força de protagonismo do ambiente onde a aventura se passa.

Esta potência sub-aproveitada é de se lamentar sobretudo porque grande parte da equipe criativa de Two Falls: Nishu Takuatshina é de origem indígena e traz consigo toda a herança daquele local, algo que fica evidente pela delicadeza respeitosa com que as histórias convergentes da narrativa são tratadas ao culminar para a jornada dos dois personagens que guiam a trama.

Um maior uso de colecionáveis, pontos de interesse complementares ou até de vestígios mais aprofundados seria uma forma de engrandecer ainda mais esta importância tão meticulosamente expressa nas falas de cada indivíduo que encontramos e que acabam, à sua maneira, nos ajudando a montar um mosaico fragmentado que só irá se desvelar quando chegarmos ao clímax dos últimos episódios.

Também senti falta de um cuidado mais precioso na escolha dos idiomas dos diálogos, que só estão disponíveis em inglês e francês, em áudio tal como nas legendas, algo que não só perde o referencial da representatividade histórica como também prejudica o entendimento de uma história tão cheia de nuances para não falantes de uma destas duas línguas. Ou seja, infelizmente nem o idioma nativo para efeitos de fidelidade, nem idiomas outros para acessibilidade estão disponíveis.

Não fosse isso, o aspecto sonoro do jogo seria exemplar. A mixagem sutil das músicas instrumentais e a ambientação, longe de toda a pompa de produções mais grandiloquentes, garantem a singeleza de eventos muito pessoais, que certamente não tem a ganância de transformar tudo, mas sim de retratar aquele pequeno-grande universo particular, algo que está presente sobretudo na atuação das vozes que dão vida a Jeanne e Maikan.

Ajudam neste aspecto tanto a qualidade do texto, bastante refinado e embevecido de significados e entendimentos simbólicos, e principalmente a construção de cada personagem. Dos heróis aos NPCs menos destacados, todos carregam em si uma complexidade difícil de se criar e ainda mais complicada de se estruturar em um enredo bem amarrado como este.

Pelo ponto de vista visual, há um certo conflito de sensações. Por um lado, o tom estilizado do traço flat tridimensional segue uma tendência ao minimalismo, se aproveitando de cores e formas suaves, preenchimentos harmoniosos e pouca granulação. Por outro, a falta de expressividade das figuras humanas e de arestas mais grosseiras também causam uma certa percepção de falta de profundidade, algo que faz falta sobretudo nas passagens mais intensas e duras da ação.

O próprio contraste entre a ousadia mais colorida do olhar de Maikan sobre a sua terra e a palidez soturna e ameaçadora pelos olhos de Jeanne, algo que traduz a dicotomia entre o estrangeiro e o nativo, acaba perdendo força exatamente nas representações de formas que fogem intencionalmente do realismo, mas pecam em atribuir sensações táteis e alegóricas sem aproveitarem as potências que a textura visual poderiam trazer.

Por outro lado, esta dualidade de entendimentos é ainda mais impressionante quando o jogo, narrativamente, consegue fugir de maniqueísmos tolos e definições sobre o certo e o errado, o bom e o mal, o bonito e o feio. Nossos julgamentos iniciais são postos à prova o tempo todo, e quando começamos a nos sentir mais confortáveis em encaixar este ou aquele sujeito em caixinhas, eles nos surpreendem e levam consigo certezas inabaláveis, deixando dúvidas e conflitos.

Como um todo, Two Falls: Nishu Takuatshina acaba se provando uma grata surpresa, uma relíquia escondida dentre lançamentos mais pomposos e barulhentos. É calmo, relativamente curto com suas pouco mais de cinco horas de campanha, cheio de sutilezas, e pode não ser a melhor opção para quem está com um pouco de sono por não favorecer picos de adrenalina ou intensidade, mas tem o coração no lugar certo e certamente é uma ótima opção para se relaxar com qualidade.

Ao jogar luz sobre as histórias que o tempo tenta apagar sem, entretanto, romantizar feitos ou criar totens de comportamento, o game propõe reflexões necessárias e maduras ao não subestimar o jogador ou suas inspirações, provando uma vez mais o quão necessário é dar voz a quem, ao longo dos séculos, tem sua cultura narrada e registrada pelo forasteiro. E se um dia eu quebrei minhas restrições em relação ao gênero narrativo ao escolher compreendê-lo, talvez, enquanto humanidade, possamos fazer o mesmo uns com os outros.



Two Falls: Nishu Takuatshina está disponível para PlayStation 5, Xbox Series e PC (Steam). Esta análise é da versão PS5 e foi realizada com um código fornecido pela Unreliable Narrators.