Três séries: “Black Mirror, 7”, “Morrendo por Sexo”, “Cem Anos de Solidão”

“Black Mirror, 7” retoma premissa clássica após fracasso da temporada anterior; “Morrendo por Sexo” tem momentos brilhantes e é necessária; “Cem Anos de Solidão” honra o livro sem esgota-lo.

Abr 30, 2025 - 03:20
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Três séries: “Black Mirror, 7”, “Morrendo por Sexo”, “Cem Anos de Solidão”

textos de Marcelo Costa

“Black Mirror, 7ª Temporada”, de Charlie Brooker (2025)
Em 2023, “Black Mirror” sofreu seu primeiro revés: criada em 2011, e ainda que com alguns leves escorregões aqui e ali, a série conseguiu se manter celebre por cinco temporadas, mas, ao tentar se repaginar com influências de true crime, tropeçou na 6ª Temporada. A questão primordial que marcou essa derrocada foi o abandono de uma premissa que, inclusive, virou meme (“isso é muito black mirror”): uma crítica voraz em como estávamos colocando as nossas vidas “nas mãos” da tecnologia sem questionar. Bem, nada como um tropeço para se ter mais cuidado na caminhada dali em diante, correto? A 7ª Temporada, que estreou em abril na Netflix, não apenas retoma a característica clássica da série como superlota os episódios de citações que situam cada passagem em um certo espaço/tempo muito próprio hiperbolizando o sarcasmo. Os dois melhores episódios da temporada são, justamente, o primeiro (“Pessoas Comuns”) e o último (“USS Callister: Into Infinity”). “Common People” é genial não apenas por amplificar a questão tecnológica, mas também por escancarar que, por trás da tecnologia, há seres humanos lucrando muito. Já “USS Callister: Into Infinity”, continuação de um episódio mediano da 4ª temporada, é muito melhor que seu predecessor. Praticamente no mesmo nível estão o belíssimo “Eulogy”, em que o grande  Paul Giamatti interpreta um homem revivendo o passado traumático de um romance que não deu certo, e o inocentemente inquietante “O Brinquedo”. Já “Bête Noire”, sobre perseguição e vingança, tem uma premissa deliciosa, que acaba se perdendo exatamente por não saber para onde ir (e, na dúvida, o roteiro decide tirar jogar tudo para o alto). Quase como uma homenagem à Woody Allen e seu belíssimo “A Rosa Púrpura do Cairo”, “Hotel Reverie” é o mais fraco dos seis, e ainda que seja um episódio isoladamente comovente, não soa parte do universo “Black Mirror” (mostrando que não basta apenas ter uma inspiração tecnológica para integrar o espaço/tempo da série). Excetuando “Common People”, que é daqueles episódios clássicos de “Black Mirror” em que o roteiro pega o estômago do espectador e o esmaga, a maioria dos demais tendem mais à beleza do que ao terror psicológico, mas colocam a série novamente nos trilhos, deixando o recado de que o futuro continua bastante ameaçador. Permaneça atento (e dê uma chance novamente à série, vale a pena!).

Nota: 7,5


“Morrendo por Sexo”, de Kim Rosenstock e Elizabeth Meriwether (2025)
Em 2005, Molly Kochan encontrou um nódulo no seio, mas seu ginecologista (incompetente) fez pouco caso. Seis anos depois, o tumor se espalhou e Molly passou por quimioterapia, mastectomia, terapia hormonal e precisou reconstruir o seio. Quatro anos depois de curado o câncer de mama, Molly sentiu dores no quadril e descobriu que estava com um novo câncer, avançado, esse em estágio 4. É nesse momento que se inicia a série “Dying for Sex”, disponível na Disney+ e criada por Kim Rosenstock e Elizabeth Meriwether, dupla que se inspirou no podcast de mesmo nome criado por Molly (e, também, em narrativas de seu blog “Everything Leads to This” e de seu livro póstumo “Screw Cancer: Becoming Whole”, de 2020) – Molly morreu aos 46 anos em 2019 (pode soar spoiler, mas você está diante de algo estilo “Titanic”, o filme, uma obra que você começa sabendo como será o fim). Porém, assim como o filme campeão de bilheteria apresenta tudo o que aconteceu entre a partida do navio e o acidente trágico, “Dying for Sex” foca em tudo o que mudou na vida de Molly entre descobrir que estava com câncer em estágio avançado e seu descanso, e o que torna essa história “diferente” é a maneira como Molly lida com seus últimos quatro anos de vida: após uma experiência traumática de abuso sexual na infância, Molly, mesmo sendo casada, teve uma vida sexual praticamente apagada, sem nunca ter tido um orgasmo. Assim que se descobre com câncer novamente, ela decide abandonar o marido e buscar os prazeres sexuais que nunca teve. Não apenas: Molly se descobre como parafílica, uma pessoa que obtêm prazer de maneira incomum à maioria, nem sempre envolvendo sexo ou penetração (e com leve aproximação do sadomasoquismo). Muita informação, certo? Então, saiba que “Morrendo por Sexo” – estrelada por uma Michelle Williams de olhar inocente e uma Jenny Slate tagarela como sua melhor amiga  – é intensa nesse nível, do sexo ao câncer, com pitadas de humor e de tristeza. Ao mesmo tempo em que exibe a dor de uma doença cruel e os traumas do abuso sexual infantil (vale mencionar a atuação poderosa de Sissy Spacek como mãe de Molly), também revela a força de uma mulher tentando entender seu próprio corpo e seus desejos (com seus dias de vida contados). Não é uma série perfeita (chega a incomodar como o roteiro parece sugerir humor no sexo praticado por Molly e seus parceiros) e, como se pode esperar, é bastante desconfortável, mas tem momentos brilhantes e é absolutamente necessária.

Nota: 7.5


“Cem Anos de Solidão”, de Alex García López e Laura Mora (2024)
Considerada a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica (ficando apenas atrás de “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes) e editada em praticamente todos os cantos do mundo (até o Radiohead tem uma música inspirada no livro: “Banana Co”, um lado b), “Cem Anos de Solidão” (1967) sempre foi considerada inadaptável para as telas por seu autor, Gabriel García Márquez. Segundo ele, a complexidade da história, o realismo fantástico, a abundância de personagens e a natureza cíclica da narrativa eram obstáculos quase instransponíveis para a tarefa (principalmente nos padrões hollywoodianos). García Márquez, porém, poderia ceder se “fosse possível filmar ‘Cem Anos de Solidão’ em várias horas, em espanhol e na Colômbia”, conta seu filho, Rodrigo Garcia. 10 anos após sua morte, em 2014, aos 87 anos, “Cem Anos de Solidão” ganhou enfim uma adaptação para as telas. Tendo o filho como um dos produtores-executivos para verificar se todas as exigências do escritor seriam atendidas, “Cem Anos de Solidão” estreou a primeira de duas temporadas (de oito episódios cada somando 16 horas de projeção) em dezembro de 2024, e até o mais cético fã do romance precisa dar o braço a torcer: a adaptação ficou surpreendente! Ainda que muitos devotos do livro tenham construído em seu imaginário durante décadas a “sua Macondo particular”, uma pequena aldeia (fictícia) fundada pela família Buendía–Iguarána, a versão da saga familiar nesse povoado vista na tela não decepciona (uma cidade em tamanho real foi construída próxima de Bogotá para servir de cenário para a série). “Cem Anos de Solidão” encanta pela poesia textual (com vários trechos do livro sendo inseridos tal qual foram escritos por Gabo), visual (o figurino mereceu uma pesquisa minuciosa que resultou em adereços realistas) e atualidade política. O elenco, composto por muitos atores não profissionais, também valoriza a verossimilhança da história. Em um trabalho meticuloso, Rodrigo Garcia conseguiu um feito raro: honrar o desejo de seu pai com uma adaptação primorosa sem que ela, porém, esgotasse o livro, pois se assistir a adaptação de “Cem Anos de Solidão” é uma encantadora experiência poética, política e visual, o caráter de imersão no realismo fantástico das páginas do livro ainda permite ao leitor as mesmas sensações, mas de um ponto de vista pessoal, lúdico e mágico. Onde estiver, Gabo deve estar sorrindo. Leia o livro, assista à série e sorria também.

Nota: 10

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.