Tempestade solar contra a ditadura

  Amarrado pelo pescoço, ferido, seminu e descalço, o homem idoso era conduzido por soldados nos arredores da Praça da Casa Forte, no Recife. Com uma barra de ferro na mão para espancar seu prisioneiro, o militar no comando desse espetáculo tétrico anunciava ao povo na rua que logo mais haveria um enforcamento.  The post Tempestade solar contra a ditadura first appeared on revista piauí.

Abr 11, 2025 - 16:09
 0
Tempestade solar contra a ditadura

 

Amarrado pelo pescoço, ferido, seminu e descalço, o homem idoso era conduzido por soldados nos arredores da Praça da Casa Forte, no Recife. Com uma barra de ferro na mão para espancar seu prisioneiro, o militar no comando desse espetáculo tétrico anunciava ao povo na rua que logo mais haveria um enforcamento. 

A TV Jornal do Commercio filmou a cena, que foi exibida horas depois, no noticiário local. Entre aqueles que a acompanharam ao vivo, na rua, encontravam-se alunas de uma escola primária próxima – e a professora dessas crianças, que então estava por acaso começando sua carreira de advogada. Indignada, ela decidiu ali mesmo que defenderia na Justiça o homem que os militares arrastavam e espancavam.

O episódio aconteceu no início de uma tarde ensolarada, em 2 de abril de 1964, dois dias depois do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil. O prisioneiro era o líder comunista Gregório Bezerra, então com 64 anos, natural de Panelas, no Agreste de Pernambuco, e ex-deputado da Constituinte de 1946. Seu suplício público foi testemunhado por Mércia Albuquerque Ferreira, nascida em 1934 no município de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. Seus dias de professora estavam perto do fim: formada em 1961 pela Faculdade de Direito do Recife, Albuquerque se converteria em uma aguerrida defensora das vítimas da repressão. 

 

Bezerra foi o primeiro dos mais de quinhentos presos políticos representados por Albuquerque nos tribunais da ditadura. Em uma entrevista concedida em 1979 ao Diário de Pernambuco, quando Bezerra estava voltando de seu exílio na União Soviética, a advogada falou do impacto que a tortura em praça pública do veterano comunista lhe causou: “Foi aquele quadro terrível que me arrancou da timidez e tranquilidade de simples professora primária que eu era até aquela data, fazendo-me prometer a mim mesma que haveria de fazer algo por aquele homem que até então eu nem sabia quem era.”

Graças à intervenção de um bispo católico, o enforcamento de Bezerra, prometido aos berros pelo tenente-coronel Darcy Vilocq, não se realizou. Dias depois, Juarez Vieira da Cunha, advogado de Bezerra, foi ao quartel conversar com seu cliente – e levou junto a estagiária de seu escritório, Albuquerque. O preso tentou tranquilizar a novata: “Minha filha, sou comunista e jamais negarei isso”, disse ele. “Não é difícil ser meu advogado, pois o que eu quero é apenas lealdade.” 

Juarez Vieira da Cunha acabou se afastando do caso depois de ser preso pela repressão. Albuquerque levou o trabalho adiante. Nos tempos brutos que se seguiram, também ela seria presa doze vezes – a primeira delas em junho de 1964 e a última em janeiro de 1973.

 

Em 1969, Albuquerque informou ao seu cliente que ele estava na lista dos presos que seriam trocados pelo embaixador americano Charles Burke Elbrick, sequestrado por guerrilheiros no Rio de Janeiro. Alinhado à posição do Partido Comunista Brasileiro, contrária à resistência armada, Bezerra recusou a liberdade. A advogada argumentou que sua recusa poderia trazer problemas aos demais presos, e ele cedeu. Tinha 69 anos quando partiu para o exílio. Voltou ao Brasil com a anistia e morreu em 1983, aos 83 anos.

Ainda Estou Aqui, premiado com o Oscar de filme internacional, mostrou ao Brasil a história de Eunice Paiva, outra advogada que enfrentou a ditadura. Albuquerque ainda está longe de ser tão conhecida, mas vem sendo justamente relembrada e homenageada. Seus diários foram publicados e uma peça teatral sobre sua vida que estreou no início do ano passado voltou a cartaz.

Mércia Albuquerque Ferreira, a mais atuante advogada dos encarcerados e torturados pela ditadura no Nordeste, morreu em 2003, de um câncer fulminante, aos 69 anos.

 


Andrea Beltrão, de 61 anos, já está no palco quando o público começa a se acomodar nas 171 cadeiras do Teatro Poeira, no Rio de Janeiro. Sentada à mesa – na companhia do filho Chico Beltrão, 29 anos, que faz uma participação especial na peça –, a atriz observa os espectadores. Busca imaginar quem são eles, o que fazem na vida e o que os motivou a ver Lady Tempestade, peça centrada no diário que Mércia Albuquerque escreveu entre 1973 e 1974.

Lady Tempestade é o segundo monólogo de Beltrão. O primeiro foi Antígona, adaptação da tragédia de Sófocles dirigida por Amir Haddad que estreou em 2016 e ficou sete anos em cartaz, com interrupções. O tema do confronto com o poder já estava ali: a protagonista é uma jovem que enfrenta Creonte, rei de Tebas, para reivindicar que seu irmão, tido como traidor da cidade, seja sepultado segundo os ritos gregos. 

A peça sobre a advogada pernambucana nasceu da colaboração entre a carioca Beltrão e a atriz e diretora mineira Yara de Novaes, de 58 anos. Entre 2021 e 2022, as duas atuaram na novela Um Lugar ao Sol. Embora não se vissem com tanta frequência – estavam em núcleos diferentes da história –, começaram a conversar sobre um projeto conjunto no teatro. “Eu queria muito trabalhar com ela, uma mulher incrível, uma artista genial”, lembra Beltrão, que já havia assistido a uma peça dirigida pela colega – Prima Facie, com Débora Falabella. Faltava o texto, e elas começaram a procurar.

Novaes tinha acabado de filmar , de Rafael Conde, baseado no livro Zé – José Carlos Novais da Mata Machado – Uma Reportagem, do jornalista cearense Samarone Lima. Vivido por Caio Horowicz, o personagem-título do filme é um líder estudantil mineiro que fez parte da Ação Popular, grupo de resistência à ditadura. Preso em São Paulo graças à delação de um informante – seu cunhado –, Mata Machado foi transferido para o Recife, onde morreu sob tortura em 1973, aos 27 anos.

No set de filmagem, Novaes – que interpretou Ieda, a mãe do jovem assassinado pela ditadura – ouviu falar pela primeira vez de Albuquerque. Foi a advogada pernambucana que conseguiu encontrar, exumar e transferir o corpo de Mata Machado do Recife para Belo Horizonte. “Fiquei intrigada com essa mulher e quis saber mais”, lembra a diretora.

 

Pesquisando sobre Albuquerque, Novaes chegou a Roberto Monte, 69 anos, economista pernambucano radicado em Natal que desde 1986 dirige a ONG Centro de Direitos Humanos e Memória Popular. Em sua casa, ele guarda milhares de livros e documentos sobre a história da esquerda nordestina desde os anos 1930. Esse acervo serviu de base para o portal DHnet, que reúne muitos depoimentos de personagens históricos da luta contra a ditadura. O site dedica uma seção a Albuquerque.

Em 2003, logo após a morte da advogada, Monte recebeu um material precioso das mãos de Octavio Albuquerque, o viúvo: os diários que ela escreveu entre 1973 e 1974, cerca de novecentas cartas enviadas pelos presos e seus familiares, cópias de processos em que Mércia Albuquerque atuou e uma infinidade de recortes de jornais relacionados a Gregório Bezerra. Entre os documentos, havia inclusive trechos de uma autobiografia que ela não concluiu. “Mércia era muito organizada. Recebi dezenas de pastas de plástico colorido”, diz Monte. “O material mais sensível, os diários e as cartas, Octavio me mandou aos poucos, por sedex, do Recife, onde moravam, para Natal.”

Conforme recebia, ele ia digitalizando e disponibilizando os documentos no portal. “Mércia é seguramente a mais importante advogada de presos políticos do Nordeste”, diz Monte, que lembra a relevância dela para seu estado de adoção: “Dos presos e perseguidos que ela defendeu, quase cem são do Rio Grande do Norte.”

Na época em que Novaes o contatou, Monte estava finalizando a edição dos diários que Albuquerque manteve em 1973 e 1974 – período especialmente sombrio da ditadura, a maior parte dele sob a mão pesada do presidente Emílio Garrastazu Médici. Monte passou o texto para a diretora, com a edição ainda incompleta. Também lhe enviou o áudio da entrevista que Albuquerque concedeu a Samarone Lima para o livro . Imediatamente, Novaes compartilhou esse material com Andrea Beltrão.

 

A atriz resistiu a ler os diários. Depois de Antígona, pensava em fazer A Falecida, de Nelson Rodrigues. Além disso, os escritos de Albuquerque evocavam memórias familiares delicadas. “Tive um tio que foi muito perseguido e preso”, relata Beltrão. Era o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que chegou a se exilar no Chile. Criança, Beltrão percebia que “alguma coisa muito, muito ruim” estava acontecendo com sua família: “Eu vi bem as situações na minha casa: esconder coisas, a polícia entrar.”

Beltrão tentou fazer Novaes desistir. “Poxa, Yara, eu estou enterrando gente em cena há sete anos. Eu mato Creonte, eu mato Laio, eu mato Édipo. Vamos fazer uma comédia bem tosca”, propôs. Mas a atriz logo entendeu que sua resistência levaria a diretora a dar um passo atrás na ideia de um trabalho conjunto. “Eu percebi que ia perder a Yara e tive que ler os diários”, diz Beltrão. Depois de ler, ela concluiu que não poderia contornar a história da advogada pernambucana. Beltrão, afinal, é filha de um pernambucano.

Sobrinha de Novaes, a dramaturga e professora de teatro Silvia Gomez, de 47 anos, foi chamada para fazer o texto. Ela conta que trabalhou em Lady Tempestade durante todo o ano de 2023. “Tinha um receio de não estar à altura, de não conhecer história suficiente, de não honrar essa história. Então pesquisei a fundo, li muitos livros”, diz. Gomez também entrevistou Roberto Monte e Eliane Aquino, prima de Albuquerque. A juíza Andrea Pachá e a pesquisadora Helena Vieira, que investigou a atuação das mulheres na ditadura, serviram como consultoras para questões do Direito.

Embora também tragam detalhes da vida cotidiana – a convivência com o marido e o filho, encontros com amigos –, os diários de Albuquerque tratam sobretudo de tortura, desaparecimentos, mortes e desespero. A autora recebia clientes e familiares dos presos em qualquer dia da semana, pela manhã, tarde ou noite. Eram mães aflitas para saber o paradeiro dos filhos. Desassistidas, algumas delas lhe pediam dinheiro para comprar comida.

Gomez tentou encontrar um recorte nesse universo de angústias para levar a história ao palco. O texto só fluiu quando ela percebeu que as palavras de Albuquerque tinham de ser o centro do monólogo: “Tudo o que eu precisava estava na voz dessa mulher extraordinária.” Na peça, Beltrão faz uma personagem que, por circunstâncias misteriosas, recebe os diários de Albuquerque pelo correio (a inspiração é Roberto Monte, guardião e editor desse documento inestimável).

Um episódio na trajetória de Albuquerque, ocorrido antes do período coberto pelo diário, deu o norte para a escrita de Gomez: a quarta vez em que a advogada foi presa pela repressão, em 15 de junho de 1965. Ela trabalhava em seu apartamento, no Edifício Ouro Branco, no centro do Recife, enquanto seu filho, ainda bebê, dormia no quarto. Um advogado amigo telefonou para avisar que ela seria presa. Quando os policiais chegaram, Albuquerque encontrou um modo engenhoso de pedir à vizinha do apartamento de baixo que cuidasse de seu filho, conforme ela mesma narra em um depoimento coletado no site DHnet:

Recebi um telefonema de Boris Trindade, avisando-me que soubera de uma ordem de prisão contra mim. Mal concluí a ligação e a polícia já se apresentava à minha porta. Antes que falassem, disse-lhes que iria trocar de roupas, ao que aquiesceram. Escrevi rapidamente um bilhete para uma querida vizinha de prédio, Dona Pepe, mãe do militante comunista Ivo Carneiro Valença, colocando-o em uma garrafa estrategicamente pendurada em um cordão, que mantinha na varanda, entregando-lhe o meu filho. Retirei o cortinado e o lençol para que meu bebê não corresse o risco de sufocar. Voltando à sala, acompanhei os policiais, após encostar a porta de entrada. Depois de rodarem algumas horas, como se quisessem despistar, entregaram-me na Secretaria de Segurança, mas não fui torturada.

Gomez se lembra: “Essa cena tem movimento. Os diários são frases duras, foi muito difícil ler, e o teatro pede uma ação que deixe o espectador interessado.”

Os diários de Albuquerque editados por Roberto Monte foram lançados com o título Diários 1973-1974 (editora Potiguariana) no final de 2023, poucos meses antes da estreia de Lady Tempestade. Monte agora trabalha em um livro que recolherá as cartas que Albuquerque recebia de seus clientes e familiares: “São cerca de novecentas e complementam os diários, que são muito sintéticos”, diz. Em paralelo, ele está em busca das cartas que a própria Albuquerque escreveu. Já encontrou oito, enviadas ao advogado Tércio Lins e Silva. 

 

No segundo semestre de 2023, os ensaios começaram com uma primeira versão da peça, que Gomez ia reescrevendo sempre que uma cena não funcionava no palco. Certo dia, conversando com Novaes, Beltrão mencionou que seu filho Chico estava se encaminhando para uma carreira musical e pensava em ser compositor de trilhas sonoras. A diretora então pediu para ouvir alguma peça do rapaz. Gostou e em seguida o convidou para fazer a trilha de Lady Tempestade.

Chico Beltrão assistiu a todos os ensaios e acabou sendo incorporado à peça. Sentado a uma mesa no palco, ele conduz a trilha de um computador e também faz intervenções pontuais na história. “Ele nunca tinha feito teatro. Yara estava alguns quilômetros na minha frente”, diz Beltrão. “Ela já sabia que a gente ia tratar de mães e filhos. Foi muito legal. E mais que confortável, é bonito ter o Chico do meu lado. É muito forte.”

Assim como Ainda Estou Aqui, Lady Tempestade fala sobre a difícil relação entre as mães e suas famílias em tempos de opressão política. “Esse assunto é universal”, acredita Novaes. Albuquerque teve apenas um filho, Aradin. “Ela queria engravidar, mas seu médico disse que o estado emocional dela prejudicava o seu metabolismo. Ela vivia o tempo todo sob tensão”, diz Gomez. “Mas tratava todos os jovens que defendia, muitos com pouco mais de 20 anos, como se fossem seus filhos, com a compaixão que só as mães possuem.”

A diretora acredita que a peça pode tocar até os sentimentos de um improvável espectador que negue o caráter autoritário do regime instaurado em 1964. “Uma história tão humana como essa, tão à flor da pele, talvez possa comover as pessoas para além do negacionismo.” Não raro, familiares de pessoas presas, mortas ou desaparecidas durante a ditadura assistem à peça e depois esperam a atriz para cumprimentá-la. “Fiquei muito comovida quando a sobrinha de Mércia veio ver a peça. Chorando, ela me abraçou e disse que o jeito que eu passo batom é igual. Muito bom saber que, mesmo sem conhecer a Mércia, eu acertei”, conta Beltrão.

O texto com frequência emprega em uma mesma oração verbos no pretérito, no presente e no futuro. “Essas coisas acontecem, aconteceram e acontecerão” é uma frase recorrente. “É como se esse tempo verbal arisco lembrasse que o Brasil é reincidente no esquecimento da sua história”, explica Gomez. Em outra cena, a personagem conversa por telefone com o homem sem nome que lhe mandou os diários. “Por que você me mandou o diário?”, pergunta. “Para de me ligar. Eu não queria.” A dramaturga quis registrar a angústia que a atriz sentiu quando recebeu a proposta de levar os registros de Albuquerque ao palco.

Lady Tempestade estreou em 2024, sessenta anos após o golpe. A temporada foi curta porque Beltrão já estava escalada para No Rancho Fundo, novela da Globo. Em fevereiro, a peça retornou ao Teatro Poeira, onde fica em cartaz até 27 de abril. Em seguida, roda o país até novembro, com apresentações em Porto Alegre, São Paulo, Uberlândia, Belo Horizonte, Brasília, Recife, Natal, Fortaleza, Campina Grande e Alagoas. Terá ainda uma versão para o cinema, com direção de Mauricio Farias, marido de Beltrão. As filmagens foram realizadas com apenas dois celulares, em janeiro e fevereiro. A data para o lançamento ainda não foi definida.

O título da peça é uma homenagem. No livro editado por Roberto Monte, Mércia conta que sua mãe era uma mulher terna e acomodada. “Enquanto sou tempestade, ela é bonança”, comparava. Beltrão acredita que a mulher-tempestade era ao mesmo tempo uma pessoa “solar”: ela desfilava no Galo da Madrugada durante o Carnaval do Recife, era apaixonada pelo marido e gostava de receber gente em casa, de dançar, viajar, beber vinho. “Em plena ditadura, pintava o cabelo de roxo, de azul”, surpreende-se. “Apesar de tudo, Mércia Albuquerque Ferreira não largou a vida.”

The post Tempestade solar contra a ditadura first appeared on revista piauí.

Este site usa cookies. Ao continuar a navegar no site, você concorda com o nosso uso de cookies.