Spinumviva*

Quem quiser perceber o caso Spinumviva e seguir os seus desenvolvimentos desde o início perde tempo porque, quando chegar ao fim, já esqueceu o princípio. De resto não há fim – este resumo que, em jeito de conclusão, está aqui, já deve estar ultrapassado por mais detalhes intrometidos que a conta-gotas aparecem nos jornais. Que se dane a historieta, que não tem importância. Ou melhor, tem tão pouca que ao fim deste tempo todo ainda ninguém de consequência acusa Montenegro de crimes – só de falta de ética, e mesmo isso esticando muito as pernas do raciocínio. E, do que já se sabe, de crimes nicles mas de espreitadelas pelo buraco da fechadura da porta do escritório muito. A mulher de Montenegro tem brilhado pela ausência mas se a coisa continuar a render ainda havemos de apurar se como cozinheira deixa ou não a desejar, se era boa mãe, se lê alguma coisa antes de adormecer e o quê. O que interessa perceber é como por causa de uma coisa destas o governo cai quando ninguém acha que eleições resolvam qualquer problema. O caso é tão estranho que, descontando algum despropósito da comparação, faz lembrar a Grande Guerra: era improvável, ninguém queria, mas um assassinato tresloucado espoletou o mecanismo das alianças e do não perder a face, e a partir daí a coisa escalou e arrastou-se por quatro sangrentos anos. Sangue e mortos é claro que não vai haver. Mas do não perder a face há aqui muito. Porque o PS queria cozer em lume brando o PM, através do mecanismo da Comissão de Inquérito, para o cobrir de alcatrão e penas quando as sondagens dissessem que o eleitorado estava farto do PSD. E este, antevendo o perigo, deu-lhe um cheque com a rainha, isto é, vai fazer comissões de inquérito à tua tia. O pobre do PS, nesta altura, já não podia recuar e os seus quadros, a começar pela inspirada e loquaz Alexandra Leitão, refugiaram-se na tese de que quem fez cair o Governo foi o próprio Governo. A própria diz isto com tanta convicção, e tão larga cópia de argumentos, que a gente chega a imaginar que ela acredita no que diz. Isso o PS. Já o Chega achou que não tem nada a perder com eleições ou, se tiver, o salvar o Governo num caso de alegada corrupção empanaria uma das estrelas da sua bandeira, que é justamente o combate àquele flagelo. E além do mais tinha uma vingança para operar, que era a das linhas vermelhas da dura rejeição de Montenegro – já lá vou. Isto tudo é coisa lá da jigajoga parlamentar e do calculismo eleitoral. A política faz-se sobretudo disso mas o comentariado, cuja missão é ilustrar a população leitora, que diz? Descontemos os da extrema-esquerda: o PCP e o BE salivam porque sonham com uma nova geringonça, desta vez com menos oportunismo à la Costa, e mais convicção à la Pedro Nuno. Estão a nanar, claro. Porque mesmo que o PS ganhe (e não se imagina porquê) há agora uma sólida maioria de direita que nada permite supor que se estiolou. Depois temos os do PS, assumidos ou embrulhados na manta esfarrapada da isenção. Capitaneados à distância pela esfusiante Alexandra, que vai dizer aquelas coisas torrenciais que diz no Princípio da Incerteza (secundada, no geral, com grande profundidade pelo intelectual Pacheco) e montando, neste particular, o cavalo do Chega, que consiste em dizer que não há descanso enquanto todos os políticos no activo não tiverem um par de asas nas costas e todos os corruptos, reais ou alegados, estiverem nas masmorras do Ministério Público. Donde, o caso Spinumviva vai ser explorado até ao tutano na campanha. A autoridade do PS nestas matérias é, vamos dizer assim, menos do que escassa, pelo que se aguarda uma guerra de trincheiras na lama (e afinal a analogia com a Grande Guerra encontra aqui um reforço). Vem a seguir a turba social-democrata, que tem uma data de tribos: a dos que estão sentados em cima do muro e que afiançam que o sistema está bloqueado e que portanto o ideal seria um entendimento do Centrão; os que defendem o actual estado de coisas a outrance e por isso entendem que nas próximas eleições vira o disco e toca o mesmo; e o dos que se sabe que existem mas na dúvida vão falando pouco, e que veriam com bons olhos calçar uns patins a Montenegro, a ver se doutra lura sai um coelho mais gordo. Finalmente há os bons, que são os da minha criação. E estes dizem, como eu, que a patetice das linhas vermelhas impede qualquer esperança de reformismo, de crescimento que não seja pilotado exclusivamente pelo turismo e os fundos europeus (que aliás vão secar) e da remessa do PS e restantes esquerdas para uma sadia estada de duas ou três legislaturas nos cafundós da irrelevância. A menos que o PSD viesse a ter a maioria absoluta (com o CDS e a IL) em 18 de Maio, o que não parece provável. Dizem mas nem sempre bem, decerto por não se aconselharem primeiro comigo. Meus amigos: Transformaram Passos Coelho num D. Sebastião, que regressará não já de Alcácer-Quibir para Portugal mas de Massamá para S. Bento. E como o próprio não cessa de dizer que não quer, e já teve várias oportunidades

Mar 30, 2025 - 02:28
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Spinumviva*

Quem quiser perceber o caso Spinumviva e seguir os seus desenvolvimentos desde o início perde tempo porque, quando chegar ao fim, já esqueceu o princípio. De resto não há fim – este resumo que, em jeito de conclusão, está aqui, já deve estar ultrapassado por mais detalhes intrometidos que a conta-gotas aparecem nos jornais.

Que se dane a historieta, que não tem importância. Ou melhor, tem tão pouca que ao fim deste tempo todo ainda ninguém de consequência acusa Montenegro de crimes – só de falta de ética, e mesmo isso esticando muito as pernas do raciocínio. E, do que já se sabe, de crimes nicles mas de espreitadelas pelo buraco da fechadura da porta do escritório muito. A mulher de Montenegro tem brilhado pela ausência mas se a coisa continuar a render ainda havemos de apurar se como cozinheira deixa ou não a desejar, se era boa mãe, se lê alguma coisa antes de adormecer e o quê.

O que interessa perceber é como por causa de uma coisa destas o governo cai quando ninguém acha que eleições resolvam qualquer problema. O caso é tão estranho que, descontando algum despropósito da comparação, faz lembrar a Grande Guerra: era improvável, ninguém queria, mas um assassinato tresloucado espoletou o mecanismo das alianças e do não perder a face, e a partir daí a coisa escalou e arrastou-se por quatro sangrentos anos.

Sangue e mortos é claro que não vai haver. Mas do não perder a face há aqui muito. Porque o PS queria cozer em lume brando o PM, através do mecanismo da Comissão de Inquérito, para o cobrir de alcatrão e penas quando as sondagens dissessem que o eleitorado estava farto do PSD. E este, antevendo o perigo, deu-lhe um cheque com a rainha, isto é, vai fazer comissões de inquérito à tua tia. O pobre do PS, nesta altura, já não podia recuar e os seus quadros, a começar pela inspirada e loquaz Alexandra Leitão, refugiaram-se na tese de que quem fez cair o Governo foi o próprio Governo. A própria diz isto com tanta convicção, e tão larga cópia de argumentos, que a gente chega a imaginar que ela acredita no que diz.

Isso o PS. Já o Chega achou que não tem nada a perder com eleições ou, se tiver, o salvar o Governo num caso de alegada corrupção empanaria uma das estrelas da sua bandeira, que é justamente o combate àquele flagelo. E além do mais tinha uma vingança para operar, que era a das linhas vermelhas da dura rejeição de Montenegro – já lá vou.

Isto tudo é coisa lá da jigajoga parlamentar e do calculismo eleitoral. A política faz-se sobretudo disso mas o comentariado, cuja missão é ilustrar a população leitora, que diz?

Descontemos os da extrema-esquerda: o PCP e o BE salivam porque sonham com uma nova geringonça, desta vez com menos oportunismo à la Costa, e mais convicção à la Pedro Nuno. Estão a nanar, claro. Porque mesmo que o PS ganhe (e não se imagina porquê) há agora uma sólida maioria de direita que nada permite supor que se estiolou.

Depois temos os do PS, assumidos ou embrulhados na manta esfarrapada da isenção. Capitaneados à distância pela esfusiante Alexandra, que vai dizer aquelas coisas torrenciais que diz no Princípio da Incerteza (secundada, no geral, com grande profundidade pelo intelectual Pacheco) e montando, neste particular, o cavalo do Chega, que consiste em dizer que não há descanso enquanto todos os políticos no activo não tiverem um par de asas nas costas e todos os corruptos, reais ou alegados, estiverem nas masmorras do Ministério Público. Donde, o caso Spinumviva vai ser explorado até ao tutano na campanha. A autoridade do PS nestas matérias é, vamos dizer assim, menos do que escassa, pelo que se aguarda uma guerra de trincheiras na lama (e afinal a analogia com a Grande Guerra encontra aqui um reforço).

Vem a seguir a turba social-democrata, que tem uma data de tribos: a dos que estão sentados em cima do muro e que afiançam que o sistema está bloqueado e que portanto o ideal seria um entendimento do Centrão; os que defendem o actual estado de coisas a outrance e por isso entendem que nas próximas eleições vira o disco e toca o mesmo; e o dos que se sabe que existem mas na dúvida vão falando pouco, e que veriam com bons olhos calçar uns patins a Montenegro, a ver se doutra lura sai um coelho mais gordo.

Finalmente há os bons, que são os da minha criação. E estes dizem, como eu, que a patetice das linhas vermelhas impede qualquer esperança de reformismo, de crescimento que não seja pilotado exclusivamente pelo turismo e os fundos europeus (que aliás vão secar) e da remessa do PS e restantes esquerdas para uma sadia estada de duas ou três legislaturas nos cafundós da irrelevância. A menos que o PSD viesse a ter a maioria absoluta (com o CDS e a IL) em 18 de Maio, o que não parece provável.

Dizem mas nem sempre bem, decerto por não se aconselharem primeiro comigo. Meus amigos: Transformaram Passos Coelho num D. Sebastião, que regressará não já de Alcácer-Quibir para Portugal mas de Massamá para S. Bento. E como o próprio não cessa de dizer que não quer, e já teve várias oportunidades que ignorou, continuar a falar nisso é o mesmo que confiar no homem providencial (que sem dúvida seria) e ignorar que se dança com quem está, não com quem não quer estar – e que quem não tem cão caça com gato.

E também dizem ou insinuam que há que despedir com urgência Montenegro porque ele é um obstáculo à consagração da escolha do eleitorado, que é patentemente uma aliança das direitas. É. Mas isso não é razão para aproveitar a boleia oportunista da Spinumviva, crucificando o homem sob pretexto de um amor imarcescível à ética, que esquecerão logo que o homem do leme seja mais do nosso agrado. O oportunismo tem em si mesmo custos e projecta sombras compridas.

Não é altura de falar nessa questão, não se muda de general no início de uma batalha. E de resto o bom do PSD tratará disso no caso de perder as eleições, que aquela congregação aprecia muito quem lhe conserve os lugares e não quem lhe coarcte as esperanças.

Nem é sequer certo que as juras de linhas vermelhas sejam para manter, mesmo com este Montenegro, porque se alguma coisa já demonstrou é que tem espírito de sobrevivência e não se vê por que razão não pode ser branco ou cinzento.

Reitero portanto o que já disse antes das últimas eleições: Tirar o Chega da equação é uma burrice suicidária. Churchill afirmou que “If Hitler invaded Hell I would make at least a favourable reference to the Devil in the House of Commons”.

Em guerra não estamos mas o Chega talvez seja o Diabo, pelo menos a julgar pelo grupo parlamentar, que é pela maior parte uma recolha de populares irados dos cafés, adestrados no vozear pedestre; e o partido carece de qualquer consistência em matéria de política económica, além de cavalgar sem arreios qualquer bandeira reacionária, boa ou má. Além do que o líder dá de si boa conta no combate mas não sabemos se dará na gestão da coisa pública.

Porém: Um governo de coligação com o Chega seria necessariamente pior do que o que temos? Dava-me jeito fazerem-me rir, mas valores mais altos se alevantam.

* Publicado no Observador