Revendo uma obra-prima

Dos vários longas-metragens a que assisti em abril, durante as minhas férias, o único a me deixar deslumbrado foi A Liberdade é Azul, visto outra vez, meio por acaso, no canal Telecine Cult. Lançado em 1993, o filme produzido por Marin Karmitz é o primeiro da chamada trilogia das três cores, formada com A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha, ambos de 1994, todos dirigidos por Krzysztof Kieślowski, coautor dos roteiros em parceria com Krzysztof Piesiewicz. Foi Piesiewicz quem teve a ideia de tentar filmar os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, transpondo as cores da bandeira da França, conforme Kieślowski explicou: “Azul é liberdade. Claro que é igualdade também. E pode com a mesma facilidade ser fraternidade. Mas o filme [A Liberdade é] Azul é sobre as imperfeições da liberdade humana. Até que ponto somos realmente livres?… Julie [Juliette Binoche] tenta se libertar de tudo que tem a ver com seu passado… Ela decide deletá-lo. Se o passado volta, é só através da música. Mas parece que não é possível se libertar inteiramente de tudo que ocorreu. Não se pode, porque em certo momento surge algo como um simples medo ou um sentimento de solidão ou, por exemplo, como Julie experimenta em determinado momento, a sensação de ter sido enganada. Esse sentimento altera Julie tanto que ela percebe não conseguir mais viver como queria… Os três filmes são sobre pessoas que têm algum tipo de intuição ou sensibilidade, que têm pressentimentos. Isso não é necessariamente expresso em diálogos. As coisas raramente são ditas diretamente nos meus filmes. Muitas vezes, tudo o que é mais importante acontece nos bastidores, não se vê. Ou está presente na atuação dos atores, ou não está. Ou se sente, ou não” (Kieślowski on Kieślowski, Danusia Stok ed., faber and faber, 1993, p.212 – 16). The post Revendo uma obra-prima first appeared on revista piauí.

Mai 7, 2025 - 14:48
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Revendo uma obra-prima

Dos vários longas-metragens a que assisti em abril, durante as minhas férias, o único a me deixar deslumbrado foi A Liberdade é Azul, visto outra vez, meio por acaso, no canal Telecine Cult. Lançado em 1993, o filme produzido por Marin Karmitz é o primeiro da chamada trilogia das três cores, formada com A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha, ambos de 1994, todos dirigidos por Krzysztof Kieślowski, coautor dos roteiros em parceria com Krzysztof Piesiewicz. Foi Piesiewicz quem teve a ideia de tentar filmar os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, transpondo as cores da bandeira da França, conforme Kieślowski explicou:

“Azul é liberdade. Claro que é igualdade também. E pode com a mesma facilidade ser fraternidade. Mas o filme [A Liberdade é] Azul é sobre as imperfeições da liberdade humana. Até que ponto somos realmente livres?… Julie [Juliette Binoche] tenta se libertar de tudo que tem a ver com seu passado… Ela decide deletá-lo. Se o passado volta, é só através da música. Mas parece que não é possível se libertar inteiramente de tudo que ocorreu. Não se pode, porque em certo momento surge algo como um simples medo ou um sentimento de solidão ou, por exemplo, como Julie experimenta em determinado momento, a sensação de ter sido enganada. Esse sentimento altera Julie tanto que ela percebe não conseguir mais viver como queria… Os três filmes são sobre pessoas que têm algum tipo de intuição ou sensibilidade, que têm pressentimentos. Isso não é necessariamente expresso em diálogos. As coisas raramente são ditas diretamente nos meus filmes. Muitas vezes, tudo o que é mais importante acontece nos bastidores, não se vê. Ou está presente na atuação dos atores, ou não está. Ou se sente, ou não” (Kieślowski on Kieślowski, Danusia Stok ed., faber and faber, 1993, p.212 – 16).

Desde os primeiros planos, A Liberdade é Azul  “é estruturado de maneira complexa, tanto auditiva quanto visualmente”, escreveu Annette Insdorf, professora da Columbia University: 

 

“Imagens-chave acumulam significado ao longo do filme e nos tornam atentos para o que não podemos ver, assim como para o que nos é revelado. [No primeiro plano,] o som precede a imagem – ouvimos um carro antes do corte da tela preta para a roda em alta velocidade que cria uma sensação de insegurança… No segundo plano, o crepitar de uma embalagem de bala se funde com uma mão erguida para o céu, estendendo um papel azul para fora da janela do carro azul. Uma menina é vista pela janela do banco de trás, com luzes circulares piscando, intermitentes. O quarto plano é o ponto de vista da menina em um túnel. Depois que o carro encosta para ela poder sair e se aliviar, vemos um close-up de óleo pingando de um tubo do carro, detalhe que desperta suspense” (Double Lives, Second Chances – The Cinema of Krzysztof Kieślowski, Hyperion, 1999, p.141). 

Ter resistido à passagem do tempo e se mantido deslumbrante é prova da rara qualidade de A Liberdade é Azul que, ao estrear, recebeu diversos prêmios, entre eles o de Melhor Filme e Melhor Atriz, atribuído a Juliette Binoche, no Festival de Veneza, em 1993. Passados mais de trinta anos, o filme permanece exemplar – do roteiro à decupagem, das locações à fotografia e às atrizes e atores, da montagem à música de Zbigniew Preisner – contribuições variadas, todas em harmonia, a serviço de tornar a liberdade um tema pessoal intrincado.

Juliette Binoche em A Liberdade é Azul

 

Segundo Insdorf, Kieślowski induz o espectador “a cumprir um preceito formulado em Hiroshima, Meu Amor, [de Alain Resnais, 1959]: ‘É preciso aprender a arte de ver’… O filme de Resnais, assim como a trilogia das três cores, investiga uma maneira de ver que não é simplesmente apreensão, mas compreensão, não reconhecimento, mas revelação.” (idem Double Lives, Second Chances, p.145) 

 

Em A Liberdade é Azul, segundo a jornalista e cineasta canadense Katherine Monk, Kieślowski pergunta ao espectador:

“É possível se apaixonar novamente? O amor não é apenas uma armadilha que limita nossa liberdade? O que é mais importante para nós: liberdade ou amor?… Sim, o amor é o que nos torna relevantes e é por isso que fiz esses filmes – para dizer isso. Mas o amor é algo muito complexo. Tem o seu lado escuro e o seu lado brilhante e lindo. Mas o amor nunca é óbvio. Muitas vezes está escondido bem no fundo de nós. É essencialmente disso que trata a trilogia: as maneiras como o amor é finalmente revelado… Eu simplesmente faço filmes e conto histórias… Não estou criando o mundo… Estou criando uma gota d’água na qual as pessoas que me cercam são refletidas…” (Vancouver Sun, 8 de outubro de 1994. Reproduzido em Krzysztof Kieślowski Interviews, Renata Bernard e Steven Woodward ed., University Press of Mississippi, 2016. p.144 – 145).

 

Em junho de 1994, após a estreia de A Fraternidade é Vermelha no Festival de Cannes, no qual Pulp Fiction: Tempo de Violência, de Quentin Tarantino, ganhou a Palma de Ouro, Kieślowski anunciou que não iria mais fazer filmes. Em entrevista publicada na revista Sight and Sound, daquele ano, explicou sua decisão: “Não tenho mais paciência para isso. Não havia percebido, mas de repente me dei conta: minha paciência acabou. E paciência é um requisito fundamental nessa atividade… Eu fiquei velho. Quero viver normalmente. Eu não tive uma vida normal durante os últimos vinte anos e quero voltar a ter.” (Tony Rayns, entrevista reproduzida em Krzysztof Kieślowski Interviews, idem, pp.141-142).

 

Dois anos depois dessa explicação, após uma sessão da retrospectiva dos seus filmes, no Teatr Ósmego Dnia, em Poznan, no último evento público do qual participou apesar de ter recusado, a princípio, o convite alegando “exaustão física”, ele voltou a ser levado a explicar porque abandonara o cinema. Em resposta a uma pergunta da plateia, alegou:

“Parei de fazer filmes por vários motivos e suponho que um deles seja o cansaço. Fiz muitos filmes em pouco tempo, talvez até demais… Havia, sem dúvida, muita amargura por ter me esforçado sem nunca realizar, nem de perto, o que queria. Mas, além disso, comecei a viver em um mundo de ficção, imaginário e artificial. Parei de participar da vida real e comecei a viver a vida que eu mesmo havia inventado antes com meu amigo Piesiewicz. E porque alternava filmes, praticamente sem interrupção, realmente parei de sentir que estava em contato com o mundo. Tinha me refugiado em um mundo irreal, longe das pessoas próximas, porque problemas fictícios começaram a se tornar cada vez mais importantes para mim: se alguém pode fazer isso ou aquilo, testar esta ou aquela pessoa naquele momento. Coisas reais deixaram de importar, porque as imaginárias tomaram seu lugar… Então eu simplesmente pensei: chega disso.” (Marek Hendrykowski e Mikolaj Jazdon, Fragmentos do Encontro em Krzysztof Kieślowski Interviews, idem, p.182).

Kieślowski faleceu em 1996, aos 54 anos. A partir de 1966, dirigiu inúmeros documentários, gênero que abandonou em 1980 quando passou a realizar apenas filmes de ficção (uma das razões para ter deixado de fazer documentários foi, segundo ele, ter se convencido de que o que realmente mais o interessava “não deve, não deveria, ser filmado… Eu simplesmente me oponho a invadir com uma câmera os sentimentos, paixões e emoções das pessoas”. (Fragmentos do Encontro em Krzysztof Kieślowski Interviews, idem p.181).

O fato de A Liberdade é Azul se destacar, a meu ver, frente aos vários filmes atuais, a maioria inéditos, a que pude assistir no mês passado, pode ser considerado indício de que algo vai mal, ao menos nesse segmento da produção a que tive acesso? Creio que sim, mesmo convicto de que comparar filmes entre si é tarefa ingrata, fadada ao fracasso, conforme a premiação de festivais de cinema costuma atestar. Em especial, quando se trata de avaliar filmes que podem ter méritos próprios, mas não chegam a ser sublimes.

A Liberdade é Azul, assim como A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha, estão disponíveis para assinantes nos streamings Prime Video (com adesão ao Reserva Imovision), Globoplay e Apple TV+.

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