Quando paramos de desenhar para pessoas reais e começamos a criar para fantasmas?
Como a desconexão com usuários reais transforma o design em suposição — e como recuperar a empatia no processo criativo.Mulher de cabelos loiros e ondulados, vestindo uma camiseta preta com um crachá da Cadastra, está sentada à mesa segurando um pequeno saco plástico com peças. Ela parece concentrada, participando da atividade de montagem de skates. Sobre a mesa, há um desenho técnico, um copo descartável, uma garrafa térmica e peças soltas, como eixos e rodas. A imagem transmite um ambiente de colaboração e criatividadeO problema: Projetando para fantasmasVocê já parou para pensar quantas vezes projetou algo para um “usuário” que não existe? Aquele cliente genérico, um ser etéreo feito de dados estatísticos, supostamente representando uma multidão, mas que, na verdade, não representa ninguém? Pois é. Chegamos num ponto da história do design onde, ironicamente, estamos cada vez mais distantes das pessoas reais.O momento da virada: A história do skateRecentemente, participei de uma dinâmica em um treinamento na empresa onde trabalho. O desafio? Projetar um skate.No início, sem briefing, imaginamos que seria algo institucional, algo alinhado aos direcionamentos da marca para aquele ano. Sem muitas referências, desenhamos em uma folha, mesmo sem saber para quem o skate era destinado. Quem tinha mais afinidade com design ficou responsável pela parte visual, enquanto outros membros da equipe se concentraram na montagem.Mas algo essencial estava faltando: para quem estávamos projetando?A virada: Conhecendo o usuárioAos poucos recebemos informações sobre o usuário final: uma criança ou adolescente de 8 a 14 anos, podendo ser menino ou menina. E foi nesse momento que tudo mudou:Como projetar para alguém que não conhecíamos?O que essas crianças gostam?Como traduzir suas expectativas em um objeto tão pessoal quanto um skate?A resposta veio de forma inesperada. De repente, um grupo de crianças de um projeto social entrou na sala. E ali conhecemos a Isa.Design com propósito: A voz da IsaNão sei descrever a sensação que tive ao ver Isa, fiquei emocionada, feliz em conhecê-la e com aquele pensamento ‘agora precisamos encantá-la’, porque ela precisava curtir o projeto para nos escolher como equipe. Agora, ela era nossa cliente e precisávamos conhecê-la para que tudo fizesse sentido.Fizemos diversas perguntas, buscamos captar cada detalhe e, acima de tudo, não podar sua imaginação. Queríamos que o skate refletisse seus desejos, sua identidade e seus sonhos. Com brilho nos olhos, Isa nos contou:“Sou gremista, quero que meu skate represente o campo de futebol. Eu sou volante, então quero que ele tenha movimento.”De repente, aquele objeto que antes era apenas uma peça técnica passou a ter alma, história e identidade.E isso foi realmente incrível e complexo. Porque, naquele momento, o desafio não era mais sobre estética ou funcionalidade genérica. Era sobre traduzir emoção em design.Eu estava com um time sensacional, e a verdade é que sem eles, nada sairia daquela folha de papel. Nós não conseguiríamos consolidar todas as ideias que surgiram juntos, testando, refinando e evoluindo o conceito a cada minuto. O processo estava intenso, empolgante, com tempo apertado, mas a energia era contagiante. Estávamos juntos, debatendo cada detalhe, refinando conceitos, indo além do óbvio. E tudo isso com nosso cliente real ali, olhando para a gente e esperando ansiosamente pelo seu skate. Foi ali que entendi a diferença entre projetar para um público-alvo e projetar para um ser humano real.O Insight: Como se projeta o sentimento de movimento em um skate? Como se capta a essência de um volante em um design físico?A importância do design centrado no usuárioEssa experiência foi uma lição prática sobre design centrado no usuário. No início, sem informações, caímos no viés do criador, projetando com base em nossas próprias referências e diretrizes da empresa. No entanto, ao conhecer a Isa, tudo mudou. Ela era o centro do projeto. O skate precisava ser dela, refletindo sua paixão, seus valores e sua visão de mundo.Essa vivência reforçou algo fundamental no design: não projetamos para nós mesmos, mas para quem realmente vai usar. E quando damos voz ao usuário, criamos não apenas produtos, mas experiências que fazem sentido e geram conexão real.O perigo das presunçõesQuantas vezes você viu um projeto cheio de gráficos bonitos e dados perfeitos… e depois viu esse projeto afundar? Será que os dados estavam errados ou será que a gente só não percebeu que números sozinhos não contam histórias?O grande erro:Achamos que sabemos quem é nosso usuário. E esse é o primeiro erro.“Ah, nossos clientes são profissionais do setor X, que têm entre 30 e 45 anos, gostam de otimização de tempo e compram por necessidade, não por impulso.”Beleza. Mas você viu isso acontecendo? Já observou seu usuário de verdade?Pergunta que muda tudo: Se você acha que sabe quem é seu usuário, pare agora e responda: Qual é a última coisa que o irritou? Se não souber responder de

Como a desconexão com usuários reais transforma o design em suposição — e como recuperar a empatia no processo criativo.

O problema: Projetando para fantasmas
Você já parou para pensar quantas vezes projetou algo para um “usuário” que não existe? Aquele cliente genérico, um ser etéreo feito de dados estatísticos, supostamente representando uma multidão, mas que, na verdade, não representa ninguém? Pois é. Chegamos num ponto da história do design onde, ironicamente, estamos cada vez mais distantes das pessoas reais.
O momento da virada: A história do skate
Recentemente, participei de uma dinâmica em um treinamento na empresa onde trabalho. O desafio? Projetar um skate.
No início, sem briefing, imaginamos que seria algo institucional, algo alinhado aos direcionamentos da marca para aquele ano. Sem muitas referências, desenhamos em uma folha, mesmo sem saber para quem o skate era destinado. Quem tinha mais afinidade com design ficou responsável pela parte visual, enquanto outros membros da equipe se concentraram na montagem.
Mas algo essencial estava faltando: para quem estávamos projetando?
A virada: Conhecendo o usuário
Aos poucos recebemos informações sobre o usuário final: uma criança ou adolescente de 8 a 14 anos, podendo ser menino ou menina. E foi nesse momento que tudo mudou:
- Como projetar para alguém que não conhecíamos?
- O que essas crianças gostam?
- Como traduzir suas expectativas em um objeto tão pessoal quanto um skate?
A resposta veio de forma inesperada. De repente, um grupo de crianças de um projeto social entrou na sala. E ali conhecemos a Isa.
Design com propósito: A voz da Isa
Não sei descrever a sensação que tive ao ver Isa, fiquei emocionada, feliz em conhecê-la e com aquele pensamento ‘agora precisamos encantá-la’, porque ela precisava curtir o projeto para nos escolher como equipe. Agora, ela era nossa cliente e precisávamos conhecê-la para que tudo fizesse sentido.
Fizemos diversas perguntas, buscamos captar cada detalhe e, acima de tudo, não podar sua imaginação. Queríamos que o skate refletisse seus desejos, sua identidade e seus sonhos. Com brilho nos olhos, Isa nos contou:
“Sou gremista, quero que meu skate represente o campo de futebol. Eu sou volante, então quero que ele tenha movimento.”
De repente, aquele objeto que antes era apenas uma peça técnica passou a ter alma, história e identidade.
E isso foi realmente incrível e complexo. Porque, naquele momento, o desafio não era mais sobre estética ou funcionalidade genérica. Era sobre traduzir emoção em design.
Eu estava com um time sensacional, e a verdade é que sem eles, nada sairia daquela folha de papel. Nós não conseguiríamos consolidar todas as ideias que surgiram juntos, testando, refinando e evoluindo o conceito a cada minuto. O processo estava intenso, empolgante, com tempo apertado, mas a energia era contagiante. Estávamos juntos, debatendo cada detalhe, refinando conceitos, indo além do óbvio. E tudo isso com nosso cliente real ali, olhando para a gente e esperando ansiosamente pelo seu skate. Foi ali que entendi a diferença entre projetar para um público-alvo e projetar para um ser humano real.
O Insight: Como se projeta o sentimento de movimento em um skate? Como se capta a essência de um volante em um design físico?
A importância do design centrado no usuário
Essa experiência foi uma lição prática sobre design centrado no usuário. No início, sem informações, caímos no viés do criador, projetando com base em nossas próprias referências e diretrizes da empresa. No entanto, ao conhecer a Isa, tudo mudou. Ela era o centro do projeto. O skate precisava ser dela, refletindo sua paixão, seus valores e sua visão de mundo.
Essa vivência reforçou algo fundamental no design: não projetamos para nós mesmos, mas para quem realmente vai usar. E quando damos voz ao usuário, criamos não apenas produtos, mas experiências que fazem sentido e geram conexão real.
O perigo das presunções
Quantas vezes você viu um projeto cheio de gráficos bonitos e dados perfeitos… e depois viu esse projeto afundar? Será que os dados estavam errados ou será que a gente só não percebeu que números sozinhos não contam histórias?
O grande erro:
Achamos que sabemos quem é nosso usuário. E esse é o primeiro erro.
“Ah, nossos clientes são profissionais do setor X, que têm entre 30 e 45 anos, gostam de otimização de tempo e compram por necessidade, não por impulso.”
Beleza. Mas você viu isso acontecendo? Já observou seu usuário de verdade?
Pergunta que muda tudo: Se você acha que sabe quem é seu usuário, pare agora e responda: Qual é a última coisa que o irritou? Se não souber responder de imediato, então você ainda não conhece seu usuário de verdade.
O designer que criava para ele mesmo (e nem sabia)
Outro grande perigo: projetar com base em nossos gostos pessoais.
“Eu acho que esse fluxo faz sentido. Eu prefiro esse tipo de navegação. Eu gosto mais desse layout.”
Se o seu produto for usado por idosos, você testou com um deles? Se você está projetando para crianças, você as observou interagindo?
Se a resposta for “não”, então sinto muito, mas você está desenhando para fantasmas.
Como evitar esse erro?
A experiência reforçou um princípio fundamental do design centrado no usuário: projetar para pessoas reais, não para suposições. Dois aspectos são cruciais para evitar os erros mais comuns: falar com as pessoas e observar comportamentos reais.
1. Falar com as pessoas: O perigo de criar no vazio
Conversar diretamente com os usuários parece uma prática básica, mas muitos designers evitam essa interação, confiando excessivamente em dados secundários ou pesquisas genéricas. O problema é que dados quantitativos não capturam emoções, aspirações ou frustrações reais.
O teste da mãe: Validando hipóteses corretamente
No livro The Mom Test, Rob Fitzpatrick alerta para o risco de se obter respostas enviesadas ao perguntar sobre um projeto. As pessoas tendem a ser gentis e, muitas vezes, respondem de maneira favorável por cortesia, não por convicção. Para evitar isso, algumas práticas são essenciais:
- Fazer perguntas sobre experiências passadas, e não sobre intenções futuras.
- Evitar perguntas que induzam respostas (ex.: “Você acha esse design intuitivo?”).
- Observar reações espontâneas e analisar comportamentos, não apenas palavras.
Por exemplo, em vez de perguntar “Você usaria esse aplicativo?”, questione “Me conte sobre a última vez que você tentou resolver esse problema. Como foi a experiência?”. Isso revela informações concretas e evita respostas baseadas em suposições.
2. Observar comportamentos reais: O que os dados não mostram
Conversar com os usuários é fundamental, mas observar como eles interagem com um produto é ainda mais valioso. Testes de usabilidade revelam problemas que passam muitas vezes despercebidos nos questionários tradicionais.
O que os dados não mostram
Os números indicam tendências, mas não explicam os motivos por trás do comportamento dos usuários. Um site pode ter uma alta taxa de abandono no checkout, mas sem observação direta, é impossível saber se o problema está na interface, na linguagem, na usabilidade ou na jornada do usuário.
Boas práticas para observar usuários
- Conduza testes com usuários reais antes do lançamento de qualquer funcionalidade.
- Preste atenção às dificuldades implícitas: nem sempre os usuários percebem ou relatam problemas.
- Observe padrões: se cinco pessoas cometem o mesmo erro, não é falta de atenção, é um problema de design.
- Aceite que você pode estar errado. Muitas vezes, o design inicial parece lógico para quem o criou, mas não para quem o utiliza. Reconhecer isso permite ajustes mais eficazes e produtos mais assertivos.
Por exemplo, um aplicativo de compras online percebeu que muitos clientes abandonavam seus carrinhos. Um heatmap revelou que os usuários clicavam repetidamente em um botão que não os levava ao checkout. Apenas com essa observação foi possível entender o problema e redesenhar a interface.
O teste final: Seu design é para alguém real?
Se o seu design não faz ninguém sorrir, se surpreender ou soltar um ‘isso é exatamente o que eu precisava’, então talvez você não esteja projetando para ninguém. Talvez seu usuário nunca tenha existido.
E aí, você está projetando para pessoas reais ou para fantasmas?
Referências
Fitzpatrick, R. (2014). The Mom Test: How to Talk to Customers and Learn If Your Business is a Good Idea When Everyone is Lying to You.
Quando paramos de desenhar para pessoas reais e começamos a criar para fantasmas? was originally published in UX Collective