ONU cobra explicação do Brasil sobre caso de trabalho escravo em SC
Em resposta, governo informou que acompanha a situação da mulher que trabalhou por 40 anos em regime análogo à escravidão. De 1995 a 2023, mais de 63 mil pessoas foram resgatadas de situações degradantes de trabalho

Cinco Relatorias Especiais das Nações Unidas (ONU) cobraram oficialmente esclarecimentos do governo brasileiro sobre o caso de Sônia Maria de Jesus, uma mulher negra de 51 anos, cega de um olho, surda, não alfabetizada, resgatada após 40 anos, trabalhando na residência do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis (SC), em condições análogas à escravidão. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) confirmou ao Correio o recebimento formal da comunicação e informou ter respondido dentro do prazo estipulado pela ONU.
No comunicado enviado ao governo brasileiro, os relatores da ONU expressaram preocupação com o tratamento dado ao caso, destacando violações múltiplas como tráfico de pessoas, escravidão moderna, discriminação racial, violação dos direitos das pessoas com deficiência e violência de gênero. Segundo os relatores, além da própria Sônia, seus seis irmãos também são considerados vítimas indiretas de violação, devido à privação prolongada de contato familiar.
Eles questionaram as razões que levaram a Justiça a autorizar o retorno de Sônia ao convívio dos seus exploradores; a ausência de medidas eficazes de responsabilização dos acusados; a obstrução ao contato entre Sônia e sua família biológica e sobre as providências adotadas para garantir a proteção dos direitos das pessoas com deficiência e combater o trabalho escravo doméstico no país.
As relatorias alertaram, ainda, para o grave precedente que a decisão judicial brasileira poderia representar no âmbito da luta internacional contra a escravidão contemporânea, o tráfico de pessoas e a violência racial.
No documento, além de relatar detalhadamente as informações recebidas sobre o caso Sônia, os representantes da ONU contextualizam as informações sobre trabalho escravo no Brasil. Mencionam que, entre 1995 e 2023, mais de 63 mil pessoas foram resgatadas de situações análogas à escravidão. E que muitas das vítimas são mulheres negras e analfabetas — exatamente o perfil de Sônia Maria de Jesus.
A carta da ONU foi assinada por Siobhán Mullally, relatora especial sobre tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças; Heba Hagrass, Relatora Especial sobre os direitos das pessoas com deficiência; K.P. Ashwini, Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; Tomoya Obokata, Relator Especial sobre formas contemporâneas de escravidão, incluindo suas causas e consequências e Laura Nyirinkindi, Presidente-Relatora do Grupo de Trabalho sobre discriminação contra mulheres e meninas.
Racismo estrutural
A denúncia internacional foi encaminhada à ONU em outubro de 2024, por entidades não-governamentais como o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil); o Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos; Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI); Comissão Pastoral da Terra (CPT); e o Departamento Jurídico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP. As organizações denunciaram não apenas a situação de Sônia, mas também o impacto da separação prolongada em seus irmãos biológicos.
Para o diretor do Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos, Rodnei Jericó da Silva, o comunicado internacional, apesar de não ser um processo, mostra que órgãos internacionais estão acompanhando o caso de Sônia. "Isso é uma evidência do racismo estrutural e sistêmico que nós temos no Brasil", avalia.
Uma das advogadas dos irmãos de Sônia, Juliana Hashimoto Stamm, destacou a importância da solicitação feita pela ONU ao governo brasileiro. "Para os irmãos de Sônia, que vêm tendo o direito de convivência com Sonia violado de forma reiterada, sem respaldo das instituições brasileiras, é um passo importante, e que renova as esperanças para continuarem a lutar pela liberdade e pelo restabelecimento da dignidade da irmã", frisou a jurista.
Entenda o caso
Sônia Maria foi resgatada por auditores fiscais do trabalho em junho de 2023. Mas, dois meses depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou a decisão de resgate, por entender que havia insuficiência de provas, e autorizou a volta da mulher à casa dos patrões.
Nos registros do combate moderno ao trabalho escravo, iniciado em 1995, é a primeira vez que ocorre um "desresgate", termo que passou a ser usado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), responsável pelo caso. Com a repercussão, Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina, entraram com um pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva de Sônia.
Segundo os registros oficiais, apenas em 2019 ela recebeu seu primeiro documento de identidade, e apenas em 2021 obteve registro no Cadastro de Pessoa Física (CPF).
Relatórios da inspeção trabalhista indicaram ainda que, durante seu período de cativeiro doméstico, Sônia perdeu dentes, sofreu infecções não tratadas e vivia isolada socialmente.
A operação de resgate, realizada por um grupo móvel de fiscalização, contou com a presença da Superintendência Regional do Trabalho, da Polícia Federal, da Defensoria Pública da União e do Ministério Público do Trabalho. Durante a ação, constatou-se que Sônia vivia em um quarto mofado e insalubre. Após o resgate, ela iniciou um processo de alfabetização e reabilitação em um abrigo, sendo afastada do ambiente de abuso.
Contudo, em setembro de 2023, contrariando as recomendações técnicas e humanitárias, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou seu reencontro com a família Borba. Sob forte pressão emocional e sem suporte especializado adequado, Sônia manifestou consentimento para voltar à residência da família, sendo retirada do programa de acolhimento e reabilitação que havia iniciado.
Resposta do Brasil
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), em nota oficial, confirmou o recebimento da comunicação internacional e informou que respondeu dentro do prazo estabelecido, por meio da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, via Coordenação-Geral de Erradicação do Trabalho Escravo.
Segundo o MDHC, o caso segue sob acompanhamento atento e aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União, que visa assegurar a retirada de Sônia da residência da família Borba e garantir a continuidade de seu processo de reabilitação e reintegração familiar.
O governo também ressaltou que Ana Cristina Gayotto de Borba, esposa do desembargador, foi incluída na lista de empregadores (lista suja) flagrados submetendo pessoas a condições análogas à escravidão.
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