Internet Archive e os processos que ameaçam a preservação
Processo movido por gravadoras ameaça a existência do Internet Archive, projeto que se dedica à preservação e compartilhamento Internet Archive e os processos que ameaçam a preservação

The Internet Archive, instituição sem fins lucrativos dedicada à preservação da memória da internet e de conteúdos diversos, está sob ataque e não é de hoje. Controladores de direitos autorais sempre a odiaram, ao entender que sua missão, originalmente para preservar a memória da internet, hoje expandida para digitalizar, arquivar, e compartilhar livremente todo tipo de informação, não é diferente de pirataria.
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Mal tendo saído derrotada de um extenso processo movido por editoras dos EUA, ela é agora alvo da fúria da implacável RIAA, correndo sério risco de desaparecer, e de levar com ela para o limbo todo o seu acervo.
RIAA e a possível destruição do Internet Archive
A RIAA (Associação Americana da Indústria de Gravadoras, na sigla em inglês) é uma instituição que representa as três maiores gravadoras do planeta, Sony Music, Universal Music Group, e Warner Music Group. Ela é uma velha e detestada conhecida do grande público, ao ter travado uma guerra entre o fim do século XX e o início dos anos 2000 contra o MP3, o Napster, e a distribuição digital, no que processos foram abertos até contra usuários, por baixarem músicas pirateadas.
O grupo está atualmente envolvido em dois grandes processos: um deles foi aberto contra as startups de áudio Suno e Udio, por estas coletarem músicas e letras de seus artistas contratados para uso em soluções de Inteligência Artificial (IA); as gravadoras exigem compensações de US$ 150 mil por música usada sem autorização, fora outras multas e sanções, que efetivamente visam destruir ambas iniciativas.
O outro é justamente o processo (cuidado, PDF) movido contra o Internet Archive, e da mesma forma, a intenção da RIAA é claramente de aniquilar o repositório. Aberto em 2023, ele acusa a instituição de "infração massiva de direitos autorais" das "obras de alguns dos maiores artistas do século XX". O alvo é o The Great 78 Project, lançado em 2006 para digitalizar e preservar gravações musicais e de áudio no formato de 78 rotações, proeminente entre 1898 e a década de 1950.
Esses discos produzidos em goma-laca, e duros como porcelana (eu tive alguns, herdados do meu pai. Eram... curiosos), eram bem menores que um vinil de 33 1⁄3, e por girarem muito rápido, só comportavam gravações de no máximo 3 minutos. Estes e os de 45 RPM, que vieram depois e foram popularizados pelas jukeboxes, comportavam no máximo uma música de cada lado, onde os LPs (de long play, longa duração) foram uma revolução, ao viabilizarem a produção de álbuns completos, ao invés de apenas singles.
O Internet Archive justifica o 78 Project, dizendo que embora gravadoras tenham digitalizado e comercializam boa parte dessas gravações, ainda há mérito em realizar o processo de preservação por conta, fora que muitos dos registros não terem sido disponibilizados oficialmente. Claro, tudo o que é arquivado pelo instituto fica disponível de forma controlada para acesso público, sua missão sempre foi preservar e disseminar conteúdos e conhecimento, além de agir como uma biblioteca digital, preservando a memória tal qual as físicas.
Para a RIAA, a iniciativa não é diferente de pirataria, e o argumento do Internet Archive de uso aceitável, que permite a quebra de direitos autorais para permitir o acesso a materiais restritos para fins educacionais e/ou acadêmicos, não se sustenta.

Para a RIAA, o 78 Project não passa de pirataria, e o Internet Archive deve pagar muito caro por promovê-la (Crédito: Reprodução/The Internet Archive)
As gravadoras exigem que o Internet Archive pague o mesmo valor cobrado de Suno e Udio, US$ 150 mil por música preservada; o processo original identificava 2.749 infrações, o que resultaria em uma indenização de US$ 412,35 milhões (~R$ 2,4 bilhões, cotação de 12/03/2025), um valor que a ONG não tem a menor possibilidade de pagar. Claro, piora.
No início de 2024, a RIAA adicionou uma emenda, aceita pelo júri, de incluir mais 1.393 registros, elevando a dívida para US$ 621,3 milhões (~R$ 3,6 bilhões), e na última quinta-feira (6), a associação de gravadoras cravou a faca e girou, ao adicionar (cuidado, PDF) uma SEGUNDA emenda com mais 482 gravações, totalizando 4.624 infrações. Se aceita, e grandes são as chances de que será, o Internet Archive verá a indenização proposta saltar para US$ 693,6 milhões (~R$ 4,05 bilhões).
Vale lembrar que recentemente, a instituição foi alvo de um processo muito similar movido por quatro grandes editoras dos EUA, pelo mesmo motivo, suposta pirataria. Em 2021, o Internet Archive abriu uma versão emergencial da Open Library, seu repositório dedicado à digitalização e distribuição controlada de ebooks, removendo listas de espera de acesso a publicações, devido à pandemia da Covid.
O processo, que foi violento e também ameaçava o Internet Archive de fechamento, foi resolvido via um acordo judicial confidencial (envolvendo provavelmente o pagamento de uma indenização enorme), o fechamento da biblioteca emergencial, e a injunção permanente que proíbe a Open Library de compartilhar cópias completas de livros, independente das circunstâncias.
A RIAA, por sua vez, parece bem menos propensa a resolver o caso fora dos tribunais, até porque nem em sonho o Internet Archive tem tanta grana assim, e as injunções continuam se somando e aumentando o valor a ser restituído. A intenção é claramente forçar o fechamento do 78 Project, mas por tabela aniquilará também a instituição, levando ao desaparecimento de inúmeros conteúdos preservados, entre livros, revistas, games, vídeos, filmes, músicas, sites que não mais existem, etc. As reações, claro, não têm sido das melhores.
Arquivistas e profissionais ligados à preservação digital acusam a RIAA de agir como o gorila de 800 kg, buscando destruir um projeto de preservação acusando-o de ser uma espécie de "Spotify pirata", quando o acesso às músicas, assim como os livros da Open Library no passado, são controladas por questões de copyright, e esses registros preservam bem mais do que as músicas em 78 RPM, pois incluem capas, letras, visuais, enfim, registros de uma época há muito passada. Do outro lado, defensores dos direitos autorais e controladores do espólio de artistas cujas gravações entraram no 78 Project, defendem a ação das gravadoras.
O Internet Archive rejeita legalmente as acusações de que a iniciativa se porta como um serviço ilegal de streaming, mas o processo, conduzido na corte distrital de Nova Iorque, vem sendo conduzido claramente favorecendo as gravadoras, sinalizando um destino funesto para a instituição, e para esforços de preservação.
Fonte: Ars Technica