Inimigo Público número 1: o Conhecimento

Seria bom se, perante o declínio dos EUA, a Europa, Portugal incluído, finalmente desenvolvesse uma verdadeira política de investimento em ciência e conhecimento. Eis uma prioridade pela qual vale a pena lutar.

Abr 21, 2025 - 02:29
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Inimigo Público número 1: o Conhecimento

A cena internacional continua a ser dominada pela estranha agenda da Casa Branca. Este último mês aprofundou um aspeto preocupante, com efeitos trágicos em termos internos e que se repete como comédia no plano internacional. Falo do ataque claro ao conhecimento em geral e às Universidades em particular, movido pela Administração Trump.

Do ponto de vista do projeto de tomada do poder de forma irrestrita, o ataque faz sentido. A ciência e as Universidades ocupam tradicionalmente a função de busca do conhecimento e de independência do pensamento. Quando isso é um obstáculo às políticas que se quer impor, tenta-se desmantelá-las. Que importa a evidência científica sobre as alterações climáticas quando se sai dos Acordos de Paris, ou o Direito quando não se pretende obedecer aos tribunais ou respeitar os limites da Constituição sempre que isso não seja conveniente? Dá jeito livrarmo-nos da independência objetiva do facto quando o propósito é comprar a adesão à decisão política, por mais irracional ou desumana que seja, através de narrativas que só se justificam pelo facto de serem politicamente motivadas.

O desmantelamento interno

Reza assim o primeiro minuto do discurso de J.D. Vance tão citado por estes dias: “se algum de nós quiser fazer as coisas que queremos fazer para o nosso país (…) temos de honestamente e agressivamente atacar as Universidades”. Neste caso, não se pode acusar a Administração de não anunciar ao que vinha.

Na frente interna, a Universidade de Columbia em Nova Iorque foi o primeiro alvo. Sob ameaça de corte de financiamento de 400 milhões de dólares, cedeu, num primeiro momento, às exigências da Administração. Esta, a coberto de uma acusação de antissemitismo, impunha como condições para não cortar o financiamento, a contratação de forças de segurança para deter manifestantes em protestos ou a tutela do departamento, centros de investigação e programas relacionados com o médio oriente. Num memorando datado de 21 de março, a Universidade anunciou a cedência a grande parte destas exigências, o que foi evidentemente uma decisão errada.

As exigências foram lidas pela maior parte das Universidades e da opinião pública como aquilo que são: uma restrição indevida da liberdade de manifestação e da liberdade académica, politicamente motivada. Ao ceder, Columbia esperava boa vontade da Administração. Pelo contrário, sentindo fraqueza, foram feitas mais exigências. Sob um coro de críticas, a Presidente interina de Columbia à data, Katrina Armstrong, demitiu-se.

A lista de Universidades visadas pela Administração, e que enfrentam cortes de financiamento, exigências e ameaças é extensa, contando com algumas das Universidades mais prestigiadas: Princeton, Cornell, Northwestern, e… Harvard. O caso desta última é, apesar de tudo, exemplar. Como se escreve no The Atlantic, Harvard parece ter aprendido com o erro de Columbia. A Administração dos EUA promove neste momento deportações extrajudiciais. E estudantes internacionais arriscam ter os seus vistos cancelados apenas por demonstrar simpatia pela causa palestiniana.

Perante este cenário, a cedência de Columbia não só não resultou em obter financiamento como teve por consequência enormes danos reputacionais, precisamente aquilo que Harvard quer evitar. No dia 11 de abril a Administração enviou a sua lista de exigências a Harvard, incluindo o veto de estudantes internacionais “hostis aos valores americanos”.

No momento em que escrevo este artigo, o Presidente de Harvard não cedeu, e tem recebido apoio de diversos académicos, sendo que também Obama se pronunciou em apoio à Universidade. No seguimento da tomada de posição de Harvard, a nova Presidente de Columbia, Claire Shipman, deu um sinal contrário ao anterior, assegurando que não deixaria a Administração forçar Columbia a ceder a sua autonomia.

Marcar posição na frente externa

Veremos se as Universidades e o sistema científico dos EUA sobrevivem a esta cruzada pelo controlo político. Vários académicos de topo já começam a abandonar o país e a Europa tenta posicionar-se para receber alguns deles. Enquanto isso, o secretário da saúde da Administração Trump, a braços com um surto de sarampo nos EUA, parece preferir dedicar atenção ao ‘problema’ do fluor na água e aposta que encontrará as causas da ‘epidemia’ de autismo. Está tudo dito quanto ao estado da ciência do outro lado do Atlântico.

Entretanto, na frente externa, a mesma Administração pretendeu enviar um sinal. Consistiu no envio do questionário de 36 perguntas que foi recebido pelas 6 Faculdades portuguesas que têm “American corners”, espaços financiados pelos EUA que servem para facilitar a cooperação científica e cultural, e que são acolhidos pelas Universidades de Lisboa, Nova de Lisboa, Porto, Açores e Aveiro.

Um questionário semelhante terá sido enviado a investigadores americanos a trabalhar no estrangeiro. Entre outras, as perguntas pretendiam saber se as instituições conduzem “controlos antiterrorismo dos seus empregados”, proíbem “políticas contrárias aos interesses do Governo dos EUA”, trabalham com “entidades associadas a partidos comunistas, socialistas”, não promovem projetos de “diversidade, equidade e inclusão”, “justiça climática” e protegem “as mulheres contra a ideologia de género”. O Instituto Superior Técnico, recusando-se a responder, viu o apoio, de cerca de 20 mil euros, cortado.

Esteve bem o Conselho de Reitores (CRUP) ao recomendar a rejeição de responder a um inquérito considerado inaceitável. Mas o que é curioso aqui nem é a falta de diplomacia, é a falta de inteligência. É que o peso do investimento dos EUA na ciência em Portugal é muito pouco expressivo; já o investimento do Estado português em parcerias com Universidades americanas é muito mais significativo – e é uma prioridade duvidosa, dada a habitual carestia de financiamento à ciência em Portugal. Nesse âmbito, como aponta Carlos Fiolhais, se calhar faz pouco sentido ser Portugal a financiar as instituições americanas.

E Portugal?

Como nota final assinale-se a publicação dos resultados provisórios da Avaliação das Unidades de I&D por parte da FCT. Um reforço de última hora (confirmado na véspera da divulgação dos resultados!) da dotação orçamental, com 110 milhões de euros provenientes do PRR destinados à compra de equipamentos científicos veio, qual Deus ex machina, evitar a hecatombe que se adivinhava – sem esse reforço, o financiamento teria sido menor do que no ciclo anterior, e muitas unidades temiam o pior.

Sendo uma boa notícia, não se pode esperar que o PRR resolva os problemas da ciência em Portugal – no caso do financiamento de projetos, o recurso aos fundos europeus significou a retirada quase total de financiamento a tudo o que não fosse considerado ciência aplicada. Seria bom se, perante o declínio dos EUA, a Europa, Portugal incluído, finalmente desenvolvesse uma verdadeira política de investimento em ciência e conhecimento. Eis uma prioridade pela qual vale a pena lutar.