Fernando Galrito: “As pessoas sabem o que querem, mas também querem aquilo que não sabem”
Há 25 anos fundou o festival de animação Monstra, do qual permanece o director artístico. A Time Out esteve à conversa com o também realizador e professor sobre o festival, o cinema de animação, entre outros diálogos.


Aos 25 anos, o festival de animação Monstra já tem muitas histórias para contar. Para o fazer, ninguém melhor do que Fernando Galrito, o realizador que tem dedicado a sua vida ao cinema de animação e que acabou por, através do festival (e não só, porque é também um professor), impulsionar a criação no cinema de animação português. Assente em vários pilares, a Monstra tem também ficado cada vez mais robusta, convidando todos os anos o público a ver o que quer e o que não sabe querer. Falámos do festival, mas também da força do cinema de animação português, que tem dado cartas e mais cartas um pouco por todo o mundo. A 25.ª edição da Monstra começa esta quinta-feira, 20 de Março, no Cinema São Jorge, com a Áustria em destaque.
É o Monstra ou a Monstra?
É uma monstra, porque o nome surgiu de um encontro entre duas palavras: que é mostrar, porque o festival quando nasceu era uma mostra, e uma mostra grande é uma monstra. E como o festival era para acontecer no Cinema São Jorge, que entretanto entrou em obras, também fazia sentido, dado que na nossa mitologia o São Jorge luta não contra um dragão, mas contra uma dragoa. Daí que também fazia sentido ser uma monstra. Aliás, eu até tenho uma teoria, mas se calhar é só minha, que acho que a Madragoa pode vir daí, mas pronto. Não vamos especular mais.
Mas pode dar uma boa história. Esta Monstra tem ficado cada vez maior, já com alguma expressão internacional.
Um artigo publicado há relativamente pouco tempo, punha-nos entre os dez primeiros da Europa.
Quais foram os grandes desafios da construção deste evento ao longo de um quarto de século?
A filosofia do festival tem-se conseguido manter ao longo destes 25 anos. A nossa ideia inicial era fazer um festival assente em quatro grandes pilares. Um pilar, naturalmente, é passar filmes que normalmente não são apresentados noutros meios – como cinemas ou as televisões –, cinema mais autoral, oriundo de muitas latitudes. E a cada ano convidar um país e desenvolver uma grande retrospectiva à volta da sua cinematografia. Em que fôssemos às origens e, ao longo destes 25 anos, posso dizer, com algum orgulho, que já fizemos neste festival retrospectivas de países que nem no seu próprio país foram feitas com tanta profundidade. Depois, um outro pilar importante para nós era a questão da formação. Aproveitar a vinda de realizadores, compositores, formadores, etc., e eles deixarem qualquer coisa junto do nosso público. E esse lado da formação também se tem consolidado ao longo dos anos e muitas das pessoas que não só viram filmes, mas também participaram nessas formações, são hoje bons realizadores de cinema de animação que cresceram na Monstra.
Depois há um outro pilar também que para nós era muito interessante, que era a questão do diálogo. A emergência do Tratado de Marinetti, do Futurismo, e a velocidade a que as coisas cada vez começavam a ser feitas, essencialmente nos anos 1920, 1930, até à Segunda Guerra Mundial, foi um espaço de grande encontro entre artistas. Vimos cineastas a trabalhar com escritores, com artistas plásticos, etc. Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo compartimentou-se muito, não só em países, em blocos, mas também naquilo que era a actividade dos artistas. E aquilo que o festival tentou também ao longo destes anos trazer foi trazer de novo esses diálogos, propondo que performers, pessoas do teatro, da arquitectura, do design, das artes plásticas ou da música, interagissem com o cinema de animação. [... ] De forma a que esses diálogos também consolidem um espaço de encontro onde a criatividade de mais do que uma cabeça, com olhares e pensamentos diferentes em função da sua arte, possam criar obras diferentes e isso também tem acontecido ao longo dos anos. E das novas tecnologias, naturalmente, ou daquilo que nós hoje chamamos de novas tecnologias.
E havia um outro pilar fundamental, a Monstrinha, que cresceu de uma forma enorme. Encontramos hoje em dia muitos jovens de 20, 30 anos que cresceram na Monstrinha para o cinema de animação mais independente, mais autoral. E o facto de há três anos a esta parte nós termos um dia dedicado ao cinema abstracto, tentando trazer novos olhares para as pessoas, mas também muitas latitudes, filmes que vêm um pouco do mundo inteiro. Este ano recebemos filmes de 110 países, fazendo do festival um espaço de encontro entre a nossa cultura e a cultura que vem do mundo, mostrando a toda a gente que em todas as culturas, em todas as dimensões, em todas as latitudes, é possível encontrarmos pessoas que fazem coisas bonitas, coisas que nos encantam, que nos emocionam.
O cinema de animação é uma linguagem universal?
É verdade, completamente. E o cinema de animação tem esta capacidade também, não é?
Às vezes sem diálogos.
Pois, tem essa capacidade de ir mais profundo em muitas temáticas, do que o cinema de imagem real, porque tem uma capacidade de mostrar as coisas de uma forma um pouco diferente. Temos casos de muitos filmes, especialmente na secção Dokanim, onde os documentários retratam culturas e relações humanas de uma forma mais aprofundada, muitas vezes, do que a imagem real. E isso é, o cinema de animação tem essa capacidade forte.
O cinema de animação dá mais liberdade a quem cria de imaginar e de ir um bocadinho mais longe?
E deixa também muito espaço ao espectador de ser uma espécie de co-criador, não é? O [Norman] McLaren dizia muitas vezes: eu faço linhas e pontos a mexer e as pessoas vêm-me falar que vêem bailarinas e cavalos a correr. Às vezes, sem fazermos uma cópia muito grande da realidade, conseguimos também dar um espaço a que as pessoas imaginem e ponham lá aquilo que querem.
Falou há pouco das novas tecnologias. Como olha a Monstra para as novas tendências, por exemplo, da animação digital ou mesmo da Inteligência Artificial, que é um ponto de mais de discórdia ou de debate hoje em dia?
Temos sempre medo da mudança. A melhor forma de abordar essas temáticas é enfrentá-las. O ano passado fizemos uma mesa redonda sobre Inteligência Artificial na banda-desenhada e no cinema de animação. Estreámos dois filmes feitos por portugueses em que utilizaram também a Inteligência Artificial e chegámos à conclusão que, desde que haja um lado criativo e com alguma capacidade de criatividade, a máquina pode ser uma ajuda como qualquer outra máquina. No entanto, continuamos a pensar que a nossa existência enquanto seres humanos com capacidade criativa continua ainda a ter um degrau acima da máquina. A máquina continua a ser uma peça que nos pode ajudar a ter outras dimensões da criação, mas não é ela que nos substitui. Aliás, dia 27 de Março, vamos ter uma masterclass feita pelo Priit Pärn, um grande realizador da Estónia com mais de 80 anos, e a sua mulher [Olga Pärn], sobre um filme que realizaram há 14 anos utilizando animação de areia e gravura animada. E o filme que eles acabaram de fazer utiliza motion capture. Ou seja, grandes criadores, pessoas que evoluíram com o lado analógico, também recorrem nos dias de hoje àquilo que as novas tecnologias lhes propõem para, não perdendo o lado analógico, utilizarem aquilo que as novas ferramentas lhes propõem.
Pegando no assunto dos países convidados. Como é feita essa curadoria? Há um gancho? Ou não necessariamente? Como é chegam a essas retrospectivas?
Há várias hipóteses. Por vezes são cinematografias que têm um momento importante na sua história, outras vezes é porque também tem a ver um pouco com a nossa filosofia. Este ano, convidamos a Áustria, um país muito interessante e muito importante em determinado momento da sua história neste diálogo. Vamos fazer uma retrospectiva de vários autores, nomeadamente da Maria Lassnig, uma artista plástica que experimentou também no cinema de animação e criou esses diálogos. Vamos ter uma retrospectiva do Paul Wenninger, que é um performer, mas que trouxe a performance para o cinema de animação. Vamos ter uma retrospectiva do Thomas Renoldner, um experimentalista que utiliza a imagem real, mas trabalhando-a como se fosse um filme de animação. E grande parte do percurso da Áustria tem a ver com estes nossos diálogos. Daí que na comemoração dos 25 anos, para nós fazia muito sentido ter um país com estas características e a Áustria resumia bem aquilo que gostávamos de ter aqui nesta celebração.
A programação da Monstra balança entre os mais experientes e os novos talentos. É fácil chegar aos novos talentos, nacionais e internacionais? Como é que é feita essa escolha? Se eles se apresentam, se andam a procurá-los por todo o mundo...
Um pouco as duas coisas. [...] Mas esse lado dos jovens que estão ao lado de seniores nas várias competições, para nós, é muito importante. Às vezes, existe um olhar um bocado negativo sobre as novas gerações. Falando do caso português, eu, enquanto realizador, e os meus bons colegas da minha idade, estamos perfeitamente descansados. A nova geração que está aí a crescer, e que tem filmes nas nossas competições, são pessoas que mantêm a qualidade tal qual o Abi Feijó, o Pedro Serrazina, a Laura Gonçalves, a Regina Pessoa, etc. Penso que o cinema de animação português está garantido a esse nível. [...] Espanhóis, franceses, brasileiros querem vir co-produzir com Portugal, porque sabem que têm à partida um produto de grande qualidade.
Acredita que a Monstra, falando dessas novas gerações, teve um impacto importante no que hoje acontece no cinema de animação português? E voltando, se calhar, à Monstrinha.
Eu diria que sim, porque conhecemos muitas pessoas que fazem hoje cinema de animação que começaram a fazer formações connosco, a vir à Monstrinha, a vir ver o festival. Sabemos de pessoas que inclusivamente transformámos a sua vida. Havia pessoas nas artes plásticas, na gravura e na edição ou na arquitectura, que hoje estão ligadas ao cinema de animação. E porque encontraram na Monstra uma espécie de clique.
Na história da Monstra, é possível identificar alguma animação ou realizador que tenha representado um marco para o festival ou para si?
É complicado, mas já passaram por aqui pessoas que deixaram grandes marcos. Estou a lembrar-me do nosso amigo suíço, o Georges Schwizgebel, que fez há muitos anos uma masterclass, 2008 ou 2009, e no final as pessoas estavam de boca aberta, essencialmente por uma coisa. Vieram dizer assim: ‘Ele contou os segredos todos, disse tudo, eu posso agarrar nesta técnica e fazer o meu próprio filme de animação!’. Estou-me a lembrar do Alexander Petrov, que fez uma masterclass e, no final, todos os desenhos que fez, obras-primas, ofereceu às pessoas que participaram. [...] Também há uns anos, em 2013, trouxemos um realizador brasileiro, que infelizmente já morreu, o Chico Liberato, que deu uma masterclass com a mulher, a Alba Liberato [...], e na sala só havia pessoal do secundário. Tiveram que nos expulsar da sala. Os jovens não conseguiam parar de pôr questões àquele casal, que são pessoas com alguma erudição, mas ao mesmo tempo são pessoas populares. E aquele público ficou completamente agarrado por aquele casal fabuloso e que foi também, sem dúvida, dos grandes momentos deste festival.
Neste momento é possível identificar alguma tendência ou movimento no mundo da animação?
Apesar daquilo que falámos há bocado, há uma tendência relativamente grande, e vê-se isso até nos filmes das grandes escolas: o regresso às técnicas mais analógicas. Não que não continuem a usar o computador como um complemento, mas as pessoas querem experimentar voltar às técnicas tradicionais. Em termos daquilo que são as temáticas, estamos num momento um pouco mais negro da tradição narrativa dos filmes de animação, o que pode ser mais ou menos natural, com aquilo também que se passa à nossa volta. Mas, ao mesmo tempo, é interessante a tendência das pessoas de voltarem às tecnologias mais analógicas.
E em Portugal também é igual?
Sim. Eu sou professor e as minhas matérias são quase todas de animação analógica. E tenho uma procura cada vez maior de todos os anos. E isso é interessante, há um bocado essa espécie quase de regresso às origens.
O cinema de animação português parece estar a ganhar terreno, já tivemos muito sucesso no passado, em particular com a Regina Pessoa, mas está a ganhar mais destaque a nível internacional. O Ice Merchants foi nomeado aos Óscares e recentemente Percebes tem estado nas bocas do mundo. Quais acredita serem as principais razões para isto estar a acontecer. Ou são picos de sucesso?
Por um lado há uma qualidade, há uma grande criatividade, e as escolas trouxeram um boom. Mas há uma coisa que eu acho que o cinema de animação português tem, e espero que não perca, que é a capacidade de contar, de mostrar, aquilo que são coisas muito nossas. Eu costumo dizer, quando queres falar ao mundo, fala da tua aldeia. O Ice Merchants é uma história mais global, mas ao mesmo tempo é uma história muito íntima também. Olhamos para Percebes e é uma história muito localizada numa determinada região do país, fala de um problema que ultrapassa as nossas dimensões, que é a questão do turismo. Que está a fazer com que a apanha dos percebes se vá intensificando e ao mesmo tempo desintensificando, porque cada vez há menos. É um filme internacional, toca todo o mundo. E daí que Annecy, Zagreb e todos os outros grandes festivais do mundo não ficaram indiferentes. E isso é válido para os filmes da Regina Pessoa, que são filmes, por um lado, muito pessoais, mas ao mesmo tempo também muito multidimensionais. O filme da Laura Gonçalves, O Homem do Lixo, que fala do tio dela, ganhou Clermont Ferrand. Mas aquele tio dela é equivalente em qualquer cultura, e eu diria que todas as culturas do mundo têm imigrantes. Estamos sempre a falar de nós, mas a falar para o mundo por isso mesmo, e falamos de coisas que toda a gente entende, porque de uma forma ou de outra todos temos um tio, de uma forma ou de outra todos somos agarrados por esta questão da cultura, da massificação, dos consumos, e isso faz com que os filmes que são feitos em Portugal toquem todas as pessoas de uma forma muito profunda. [...] Eu não acredito que haja muitos países no mundo, tirando a França, sei lá, os grandes produtores, o Japão, os Estados Unidos, que tenham tido, ao mesmo tempo, duas longas-metragens em competição no maior festival de cinema de animação do mundo [Nayola e Os Demónios do Meu Avô]. E isso aconteceu com as nossas duas longas em Annecy, em Zagreb também. São coisas da nossa tradição, mas que fazem parte da tradição mundial também.
Portanto, há essa identidade cultural, mas também um mercado pequeno.
Acho que nos falta aqui uma coisa. Nós temos apoios do Instituto do Cinema e Audiovisual [ICA], que nunca chegam e que achamos que são sempre poucos, e é verdade. Acabámos duas longas e depois estas pessoas todas que aprenderam e tiveram um know-how enorme ficaram paradas, ou foram para o estrangeiro. Alguém está a tirar partido daquilo que nós lhes ensinamos. E nesse aspecto, o que eu acho que falta aqui é a iniciativa privada. As maiores empresas portuguesas têm alguns milhões de lucros por ano e deveriam pôr algum desse dinheiro na cultura, e neste caso, para puxar a brasa à nossa sardinha, no cinema de animação português. Porque já deu mostras que é capaz de fazer bem e de mostrar ao mundo que temos essa capacidade. E não fazemos mais porque não temos os meios económicos para fazer. E também acredito que o Estado não pode, ou não tem os meios todos para fazer isso, e os privados deveriam ter mais abertura para isso.
Também tem sido complicado fazer entrar essas produções no circuito comercial. Não é provável que muitas pessoas querem ver cinema de animação português? Digo eu, sem ter feito nenhum estudo no mercado.
Sim, o mercado está sempre muito fechado sobre aquilo que acha que, à partida, é o que vai dar o dinheiro. E eu acho que os festivais todos, em geral, em Portugal e não só, e a Monstra em particular, provam o contrário. Nós temos uma frequência relativamente elevada para ver curtas-metragens. Porque é que o mercado dos cinemas comerciais não põe, também, um conjunto de curtas-metragens e faz disso uma sessão? E habitua o público a ver curtas-metragens. [...] E porque não misturar coisas portuguesas com coisas internacionais? E depois, também, pôr mais dinheiro naquilo que é a divulgação do que se faz em Portugal. Porque vemos cartazes e vemos publicidade aos grandes blockbusters, mas nunca vemos publicidade aos nossos blockbusters. Porque se forem ao cinema e tiverem a mesma publicidade, se calhar também se tornam blockbusters.
Temos muitas curtas-metragens. Presumo que seja com uma questão de financiamento. Mas imagina um futuro com mais longas?
Estão a ser feitas mais quatro, na realidade. Sabemos de algumas que foram apoiadas para ir a alguns mercados internacionais, onde é um espaço também de encontro. O ano passado, quando Portugal foi o convidado do festival de Annecy, foi um espaço também de grande divulgação e de grande mostra para o mundo daquilo que é o que se faz em Portugal. O nosso crescimento, neste momento, está nas mãos da possibilidade de conseguirmos mais apoio. Para fazer uma longa-metragem, o ICA põe um milhão de euros. Não se faz nenhuma longa-metragem, mesmo com um low budget, por menos de 6 milhões. É preciso encontrar parcerias para o restante. Internacionalmente encontra-se alguma parte, mas não se encontra tudo. Por isso é que eu dizia que acho que faz falta aqui a iniciativa privada a apoiar. Quem ganha 100 milhões, se meter um milhão ou dois numa longa-metragem, estamos a falar de trocos.
Possivelmente com o retorno?
E com grande possibilidade de retorno. Porque também, havendo mais dinheiro, há mais hipóteses de comunicação. E estamos a ver coisas como o filme Flow, que ninguém diria que é um filme de grande público e está a ter um êxito muito grande.
Há quem o considere o melhor filme do ano de todos. Imagem real e animação.
Exactamente. E tenho pena que um outro filme fantástico, que também está nas salas, que é o Memórias de Um Caracol, também merecia um pouco mais de atenção, porque é uma história fantástica e magnífica. Assim como os nossos filmes, a Nayola, Os Demónios do Meu Avô e muitos outros que aí virão precisam de ter grande impacto. E nós vimos isso com o Ice Merchants. Teve um sucesso enorme por causa da comunicação que teve à volta do Óscar. Imaginemos que mesmo não tendo o Óscar, ou não estando nos Óscares, conseguimos uma comunicação idêntica.
Alguns filmes portugueses, para angariarem mais financiamento, desdobram-no em episódios para a televisão. Isso é possível fazer com uma longa-metragem de animação ou para ajudar no financiamento?
Sei que há alguns projectos neste momento na calha, não vou revelar muito mais, em que a ideia é fazer um conjunto de curtas com uma certa ligação entre as histórias e o fim e o princípio de cada uma delas, de forma a que em conjunto possam ser mostradas como se fosse uma longa. Unidas num conjunto que tem uma temática próxima, uma linha condutora muito parecida. Há coisas que também estão a entrar por aí, tentar com que as antologias possam dar uma obra maior e que possam também chegar a outros circuitos de distribuição.
Mas não se vê muito o cinema de animação português na televisão.
Essa questão não sei responder, mas gostava de saber responder e dizer o contrário. Temos o Cinemax, que é um espaço onde podemos ver muitas curtas portuguesas, só que tem um horário que é pouco nobre. Muitos de nós fazemos animação, ou olhamos animação com outros olhos, por causa do Vasco Granja, que tinha um programa de cinema de animação em horário nobre. E não se percebe porque é que nos dias de hoje, quando fazemos muito mais produção, não conseguimos pôr na cabeça das pessoas o que nós pensamos quando fazemos este festival: as pessoas sabem o que querem, mas também querem aquilo que não sabem. [...] Não temos nada contra as coisas mais comerciais, mas achamos que é preciso mostrar às pessoas que existem outras coisas. E as pessoas se calhar vão se surpreender. [...] Nós vamos fazer uma homenagem a um programa que existe há dez anos na televisão francesa, um projecto chamado En Sortant De L'ecole. Todos os anos, uma produtora agarra na obra de um poeta francês, que pode ser uma base para um argumento, e convida jovens que acabaram de sair das escolas de animação para fazer um filme. E eles têm algum dinheiro e a liberdade para criar um filme. [...] E, ao mesmo tempo, o que é que a França faz? Divulga os seus poetas, dá espaço de criação de uma primeira obra aos jovens autores. É uma forma fantástica de, através da animação, divulgar a cultura. E este ano vamos ter cá a directora deste projecto, a Delphine Moret, que criou isto há dez anos. E acho que nos falta termos algumas coisas assim, que saem de uma produtora e têm encontrado apoio também, não só no ICA local, mas também nas televisões.
Não queria terminar sem falar do Fernando Galrito, realizador.
Não me sinto um realizador como a Regina Pessoa, como o José Miguel Ribeiro, como outras pessoas. Sinto-me muito mais um experimentalista. E as coisas que eu fiz ao longo da vida, pelo menos até agora, aos quase 65 anos, têm sido um bocado sempre coisas de experimentação. Eu tinha oito anos, porque via muitos filmes do McLaren e tinha acesso a película, quando comecei a riscar sobre a película tal como o McLaren. Depois tive uma máquina de Super 8, porque eu também fiz as minhas minhas pixilações. Fizemos filmes com naves espaciais que eram contentores do lixo. Fizemos documentários um pouco por vários sítios. Experimentei coisas com dança, com o amigo Stephan Jürgens. [...] Fizemos coisas também com teatro, com o Mário Trigo. Olhámos o teatro ligando a cabeça de um encenador com a cabeça de um realizador de cinema e de animação. E todas essas experiências foram instalações.
O cruzamento das artes.
O cruzamento das artes. Depois, de vez em quando, lá pelo meio surgiu um novo filme de animação. Este ano vai estrear um novo, que foi feito em parceria com uma amiga búlgara e que vem de uma história com quase 20 anos, até a idade do meu filho mais velho, porque foi ele que inspirou a história, que apagava os beijos. E o filme chama-se A História do Rapaz que Apagava Beijos. [...] Não sei se tenho uma carreira delineada enquanto realizador, mas as coisas que tenho feito, tenho aprendido muito com elas, e, essencialmente, porque elas são sempre muito de diálogo com outras pessoas.
Uma vida muito animada.
Bem animada, sem dúvida.