Entrevista: “Pela primeira vez, vamos tocar ‘Moon Safari’ do jeito certo”, diz o Air, às vésperas de show no C6 Fest

Em entrevista coletiva, banda destaca detalhes das intenções e da gravação de obra-prima de 1998 – e que será relida na íntegra no festival.

Mai 5, 2025 - 11:24
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Entrevista: “Pela primeira vez, vamos tocar ‘Moon Safari’ do jeito certo”, diz o Air, às vésperas de show no C6 Fest

por Bruno Capelas

“É quase como se tivéssemos inventado uma máquina do tempo”. É assim que Nicolas Godin, uma das metades do duo francês Air, descreve a sensação de voltar aos palcos para tocar o álbum “Moon Safari” na íntegra. Lançado em 1998, o manifesto retrô-futurista que deu pontapé inicial na carreira da banda será o principal destaque da apresentação do grupo em São Paulo, prevista para o próximo dia 23 de maio, durante a edição 2025 do C6 Fest. A menos de um mês do show (ingressos aqui), Godin e seu parceiro Jean-Benoît Dunckel participaram de uma entrevista coletiva com a imprensa brasileira para falar da expectativa da volta ao Brasil. Para o artista, será uma oportunidade única.

“Essa turnê é a primeira vez que vamos tocar ‘Moon Safari’ do jeito certo. Não precisamos mais mudar as músicas para encaixá-las em quem somos hoje. É por isso que acredito que é melhor nos ver agora do que há 30 anos”, destaca Godin. Para ele, a intenção do Air desde o primeiro acorde era fazer um disco “atemporal”, mas não havia como prever o sucesso que o disco faria. É um sentimento que seu parceiro ecoa: “Naquela época, era difícil que uma banda francesa fosse conhecida globalmente. Não tínhamos expectativas concretas, mas tínhamos esperança”, diz Dunckel.

Influenciado por Stevie Wonder, Ennio Morricone, Kraftwerk, Debussy e trilhas sonoras de ficção científica, “Moon Safari” permanece atual para o duo. “Na época, queríamos fazer música que tirasse as pessoas da realidade e as levasse para um mundo paralelo. Se fizermos um disco novo, vamos utilizar o mesmo processo: criar algo para ignorar a escuridão dos nossos tempos”, afirma Godin. Antes que os fãs se animem, porém, trata-se apenas de uma hipótese, uma vez que o Air não lança material inédito desde 2012: o foco da dupla parece mesmo centrado em “Moon Safari”.

Durante meia hora de entrevista, Dunckel e Godin falaram sobre diferentes temas. Entre eles, há a ligação de “Moon Safari” com a infância e a nostalgia, a escolha pelo inglês no disco e até mesmo a opinião da dupla sobre o uso de inteligência artificial na música atual. Os franceses do Air também falam sobre a ligação que têm com a música brasileira – e, em especial, com a bossa nova. “Muitas das músicas que nós fizemos em ‘Moon Safari’ começaram como uma bossa nova. Nas baterias eletrônicas que usamos na época, constantemente usávamos esse ritmo pré-programado”, conta Godin. A seguir, os principais trechos da coletiva.

‘MOON SAFARI’ DE VOLTA AOS PALCOS
Nicolas Godin: “Há uma grande diferença entre a época da turnê original de ‘Moon Safari’ e agora – e é um dos processos mais incríveis da minha carreira. O que acontece é que discos levam tempo para serem feitos. Toda vez que você faz um disco, ele demora para ser gravado, masterizado, lançado e divulgado. Quando finalmente chega a época de fazer uma turnê, sua cabeça já está em outro lugar – no próximo disco, talvez. Você precisa fazer shows, mas não quer mais tocar as mesmas músicas porque você não é mais a mesma pessoa, o mesmo artista, o mesmo músico. Been there, done that, sabe? Agora, quase 30 anos depois, é a primeira vez que aceitamos o disco como ele era em 1998. É uma sensação excelente ir para o palco e tocar as músicas do jeito que elas foram feitas. E é a primeira vez que fazemos isso. E é um alívio para nós não precisar mudar as músicas para encaixar em quem sou eu hoje, ou no JB de hoje. É um disco cult: não precisamos nos preocupar com o que vem aí. É por isso que acredito que é melhor nos ver agora do que há 30 anos. Pela primeira vez, vamos tocar do jeito certo. É quase como se fôssemos uma banda tributo tocando o disco – só que somos nós mesmos!”

EXPECTATIVAS NO LANÇAMENTO
Jean-Benoît Dunckel: “Quando terminamos ‘Moon Safari’, nunca imaginamos que ele seria tão bem-sucedido. Acredito que estávamos à procura de um som. Não buscávamos um som que fosse de um álbum mainstream, mas sim de um disco artisticamente poderoso. Mas não tínhamos certeza que faríamos sucesso, porque às vezes a boa música é ignorada justamente porque é muito boa para se tornar conhecida. Tivemos a chance de ter uma ótima gravadora e alguma exposição, o que fez o disco explodir na Inglaterra. Foi uma surpresa – e algo que fez a nossa vida mudar muito. Éramos jovens e estávamos animados. Foi assim que aconteceu”.

ATEMPORALIDADE
Nicolas Godin: “Quando estávamos gravando o disco, nossa principal preocupação era fazer algo atemporal. Estávamos obcecados por essa ideia. Foi uma pressão enorme, porque tínhamos medo de criar canções que não envelhecessem bem. Ao mesmo tempo, acho que só teríamos a resposta [que o disco soaria moderno depois de 30 anos] com o passar do tempo. Hoje, sabemos que tomamos as decisões certas. Quando escutamos ‘Moon Safari’ e outros discos que fizemos, percebemos que eles ainda soam frescos. É uma enorme recompensa.”

ALCANCE E LINGUAGEM
Jean-Benoît Dunckel: “Na época de ‘Moon Safari’, estávamos pensando em fazer a música que nós gostávamos. Usamos o inglês como idioma porque queríamos alcançar o número máximo de pessoas – e bem, o inglês é uma língua internacional, assim como a música que queríamos fazer. Tínhamos a esperança de que ela poderia funcionar no mundo todo, mas não tínhamos certeza porque somos franceses. Naquela época, era difícil que uma banda francesa fosse conhecida globalmente. Não tínhamos expectativas concretas, mas tínhamos esperança. E queríamos que o disco fosse poético, porque buscávamos um espírito novo, uma alma nova. Também buscávamos uma forma nova de unir os instrumentos. Era um processo que tinha a ver menos sobre canções – e mais com a música certa. Às vezes, tentamos transformar alguns temas instrumentais em canções, injetando palavras, mas nem sempre funcionava. É por isso que algumas músicas do disco são instrumentais.”

REFERÊNCIAS
Nicolas Godin: “Definitivamente, Stevie Wonder. ‘Songs in the Key of Life’ e ‘Talking Book’ foram dois discos importantíssimos para nós. Basicamente, todos os instrumentos que nós usamos em “Moon Safari” foram comprados a partir da lista de instrumentos na contracapa de ‘Talking Book’. É daí que vem o nosso som: minimoog, talkbox, clavinet, tudo, sabe? Outro disco importante é ‘The Man-Machine’, do Kraftwerk, e as trilhas sonoras de Ennio Morricone. Nossa ideia principal era mixar Kraftwerk e Ennio Morricone.”

Jean Benoit: “Kraftwerk, com certeza. Na hora de compor as músicas, porém, preciso falar também de Maurice Ravel, Claude Debussy e Eric Satie – os compositores franceses do final do século XIX e começo do século XX. Eles tinham harmonias incríveis, meio sonhadoras, flutuantes, e o Air também queria flutuar no espaço. Também nos influenciamos muito por programas de TV, trilha sonoras que víamos quando éramos crianças, como ‘Cosmos’. E claro, Beach Boys: nós gostávamos muito dos Beach Boys por conta das harmonias, era uma época em que nós ouvíamos ‘Pet Sounds’ demais. Outro trabalho da época que bateu bastante para nós foi ‘Insects Are All Around Us’, do Money Mark. Nós amávamos.”

LEGADO DO DISCO
Nicolas Godin: “Vivemos num ponto de inflexão na nossa carreira: nós temos um legado, mas ao mesmo tempo somos artistas. Temos de coexistir nesses dois aspectos do nosso trabalho: de um lado, temos orgulho do que fizemos, mas também procuramos criar coisas novas. Quando começamos nossa carreira, víamos bandas como o Kraftwerk nesse lugar – e de repente, é a nossa vez. É como ter uma nova carreira, virando uma banda que pode tocar sua música como se fosse uma peça de teatro. É quase como se “Moon Safari” fosse independente de nós agora. É um disco com sua própria vida, seu próprio legado, e que agora nos leva numa espaçonave, numa máquina do tempo. Há dias em que acordamos e parece que estamos em 1998, tocando com os mesmos instrumentos daquela época. Eu gostaria que as pessoas pudessem viver o que estou dizendo, porque é incrível: é quase como se tivéssemos inventado uma máquina do tempo. É muito louco, até meio psicodélico, sabe? Tem dias em que não sabemos se é realidade ou um sonho – embora talvez nunca saibamos mesmo onde estamos na nossa vida.”

COMO LIDAR COM A NOSTALGIA
Jean-Benoît Dunckel: “O problema com a nostalgia é que se você pensar muito nela, você acaba enlouquecendo. Tentamos não ser muito nostálgicos porque isso pode ser destrutivo. Enquanto artistas, sempre buscamos estar atualizados com o que está acontecendo agora – assim como fizemos na época de ‘Moon Safari’. Sempre quisemos fazer algo que ninguém nunca ouviu antes. Ainda hoje, estamos buscando ser um pouquinho avant-garde. Nunca quisemos reproduzir fielmente algo do passado, porque não somos artistas nostálgicos. Nós queremos olhar além do horizonte nas possibilidades da música. No entanto, quando estamos no palco, algumas boas lembranças voltam, porque acredito que a melodia e os acordes têm a possibilidade de capturar o espírito de uma época. No palco, às vezes temos visões de nós mesmos em 1998 – até podemos quase sentir o cheiro do estúdio e de Paris naquela época. Cada show é, sim, uma experiência nostálgica, mas não somos pessoas nostálgicas em si.”

INFÂNCIA E ESCAPISMO
Jean-Benoît Dunckel: “Fizemos Moon Safari quando tínhamos 26, 27 anos. Era uma época em que precisávamos dizer adeus para a nossa infância. Acredito que colocamos nesse disco tudo que nós gostávamos sobre sermos crianças. Sabíamos que aquela fase estava chegando ao fim. É por isso que o disco tem um pouco de melancolia: ela vem da sensação de ter responsabilidades, de não poder mais ser uma criança novamente. ‘Moon Safari’ surge da necessidade de escapar do mundo adulto, da responsabilidade de achar emprego, ter de trabalhar e entrar nesse mundo caótico. O disco é como uma recusa: nós gravamos a música que nós gostávamos de ouvir quando éramos crianças”.

Em seu 25º aniversário, “Moon Safari” foi reeditado em uma versão comemorativa com 2 CDs e DVD

MUNDO PARALELO
Nicolas Godin: “Acredito que o disco ainda tem a mesma mensagem hoje em dia, que é a de criar uma bolha própria. Na época, queríamos fazer música que tirasse as pessoas da realidade e as levasse para um mundo paralelo, em que elas não fossem afetadas pelo que acontece no dia a dia. Acredito que hoje isso é ainda mais intenso, porque a realidade é bem pior que em 1998. Acredito que se fizermos um novo disco, vamos utilizar o mesmo processo: criar algo para ignorar a escuridão dos nossos tempos.”

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Nicolas Godin: “Não sei dizer se ela é boa ou má. Até agora, a inteligência artificial só substituiu coisas para as quais eu não ligo, como a música comercial. Em termos de arte autêntica, ainda não ouvi nada que seja realmente bom, embora talvez demore apenas alguns meses para isso acontecer. O que sei é que por enquanto não há uma IA que faça uma música tão boa quanto as dos grandes artistas da história. O que sei dizer também é que um dos fatos que eu mais curtia quando começamos a fazer música é que havia uma série de limitações. Tínhamos pouco equipamento e poucos canais para gravar, pouca memória nos nossos discos rígidos. Por causa disso, tivemos de ser bastante criativos. Em ‘Moon Safari’, às vezes só há sete instrumentos sendo usados, porque nós só tínhamos oito canais para trabalhar. Às vezes, a limitação faz parte da criação. Hoje, há uma possibilidade infinita, então deve ser difícil saber o que fazer.”

BOSSA NOVA
Nicolas Godin: “Há muito em comum entre a música francesa e a música brasileira. Se você olhar bem para a bossa nova, as progressões de acordes e as melodias são muito próximas ao que fazemos aqui. Não sou um profundo conhecedor da música global, mas acredito que há uma conexão entre nós. É claro que a bossa nova também se inspira em muito da música erudita que nós ouvimos, mas também nos inspiramos em João Gilberto ou Tom Jobim, em cantores que cantam de maneira sofisticada, quieta. A música brasileira é muito respeitada na França, por alguma razão que não sabemos. Essa não é uma resposta que eu poderia dar para qualquer país, não estou jogando conversa fiada. Muitas das músicas que nós fizemos em ‘Moon Safari’ começaram como uma bossa nova. Nas baterias eletrônicas que usávamos na época, constantemente usávamos o ritmo pré-programado de bossa nova para compor, embora depois as músicas tenham virado outra coisa. É divertido.”

DNA AIR
Jean-Benoît Dunckel: “Sei que há muitos artistas novos, como Billie Eilish ou essa cena jovem de Los Angeles, que gostam muito do Air porque gostam do nosso lado instrumental. Por outro lado, é difícil falar de bandas que tenham o nosso DNA: muito dos que nós fizemos era inspirado no passado, e às vezes os artistas de hoje estão olhando nas mesmas fontes que nós. Mas acredito que há muita gente por aí que gosta da nossa vibe, dessa coisa mais relaxada, calma e lenta, meio flutuante.”

Nicolas Godin: “É engraçado: muita gente nos associa a um movimento chamado French Touch, que é basicamente um movimento de house music. Não é o que fazemos, é estranho. Mas somos todos amigos desse pessoal. Por outro lado, na Inglaterra, há bandas como o Portishead, em quem vejo claramente o mesmo DNA que o nosso. Eles também samplearam Ennio Morricone ou John Barry, todas essas trilhas sonoras dos anos 1960. A música deles também é lenta e minimalista na produção, então foi uma influência bem grande para nós também. A grande diferença é que eles são bastante depressivos. Outro nome que partilha do nosso DNA é Money Mark, que tem um som de órgão e um estilo de produção que tem muito a ver conosco.”

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.