Entrevista: “Não fazia ideia de que alguém no Brasil nos escutasse”, diz Andrés Calamaro
A versão do músico que chega ao Brasil em 2025 transita com elegância entre o rock, o tango, a trova, a crônica urbana e a balada romântica, sempre com uma assinatura inconfundível...

entrevista de Diego Queijo
colaborou Frank Jorge
Demorou. Foram mais de quatro décadas de carreira, dezenas de discos, idas e vindas entre Buenos Aires, Madri e outros palcos do mundo — mas só agora Andrés Calamaro sobe ao palco, pela primeira vez, na cidade de São Paulo (ingressos aqui). Ídolo incontornável do rock argentino e cronista sentimental do universo latino, Calamaro finalmente encontra a capital paulista pela tour ‘Agenda 1999’. Na verdade, serão dois shows no Brasil, pois o músico toca antes (dia 16) em Porto Alegre (ingressos aqui). Depois, segue para Peru, Bolívia, Colômbia, Bélgica, França, Espanha, Dinamarca e Irlanda.
As apresentações são bastante aguardadas por alguns admiradores, como o músico gaúcho Frank Jorge, que também viu a estreia de Calamaro nos palcos brasileiros em Porto Alegre, em 2019, e outros concertos em Montevideo e Buenos Aires. “[A vinda dele] é de uma relevância gigantesca para minimizar a pouca presença de artistas argentinos no Brasil. O público vai dos 8 aos 80. Ele agrada a diferentes gerações. Pode tocar uma versão adaptada de um clássico do tango argentino, ‘Por Una Cabeza’, um hard-rock emotivo recordando amigos falecidos, ‘Los Chicos’, ou uma balada comovente como ‘Flaca’. Um show imperdível para entender a abrangência e riqueza da sua música”, afirmou.
Logo após o show de 2019, aliás, Calamaro fez um post emotivo demonstrando que, embora sua relação com o Brasil tenha sido historicamente discreta, é carregada de respeito e fascínio pela música produzida por aqui. Na época, o argentino incluiu no repertório o samba-canção ‘Nervos de Aço’, de Lupicínio Rodrigues, lançado originalmente em 1947 por Francisco Alves e eternizada por Paulinho da Viola em 73. Além de ‘Os Argonautas’, do álbum branco de 1969 de Caetano Veloso.
A versão do músico que chega ao Brasil em 2025 transita com elegância entre o rock, o tango, a trova, a crônica urbana e a balada romântica, sempre com uma assinatura inconfundível — lírica, sarcástica, melancólica e profundamente humana. Ainda que sua carreira solo tenha atingido o pico na época dos CDs nos 90’s (também com a banda Los Rodriguez) e 00’s, Calamaro tem um histórico de feitos desde os anos 80, seja com a banda Los Abuelos de la Nada (o hit, ‘Mil Horas’, aliás, é de sua autoria), ou como produtor de álbuns de grande sucesso como ‘Contra reloj’ e ‘Habitaciones extrañas’, dos Enanitos Verdes.
Mas os toques de Calamaro se espalham por muitos outros álbuns da história de música argentina. Ele integrou a banda de Charly Garcia (reza a lenda que participou da gravação original de ‘Loco, no te sobra una moneda’, um eterno outtake de Charly de 1982) e gravou em “Filosofía barata y zapatos de goma” (1990) e “Say no more”, esteve em “Ciudad de pobres corazones” (1987) e “El amor después del amor” (1992), de Fito, além de trabalhos com Sabina, Spinetta, Intoxicados, Ratones Paranoicos e mais recentemente com o espanhol C Tangana.
O passado polêmico (ele já esteve envolvido em uma briga de proporções épicas na imprensa com Charly Garcia, por exemplo), hoje, parece longínquo. Calamaro demonstra um distanciamento consciente ou cautela estratégica sobre questões políticas pelo fato de não ter respondido a uma pergunta do Scream & Yell que envolvia o governo de Javier Milei. Recentemente alguns artistas em festivais argentinos fizeram referência à figura do mandatário. Durante o Lollapalooza, a banda Dum Chica protagonizou uma controvérsia com o vídeo de Milei demônio. No Quilmes Rock 2025, que Calamaro participou, Dilom, cujo último álbum entrou nas listas latinas de melhores do ano e que também tem a sua participação, fez um ataque ao presidente. Mas Calamaro passou longe das manifestações.
Nesta entrevista exclusiva ao Scream & Yell (com a participação especialíssima de Frank Jorge), ao falar sobre os shows no Brasil, Calamaro rejeita a ideia de enxergar países como “mercados” e reitera seu respeito profundo pela cultura brasileira. Alguém que, mesmo com décadas de carreira, sobe ao palco com a humildade de um iniciante e a alegada missão de criar algo verdadeiro. Também relembra o incentivo de Jorge Drexler para vir, a paixão pela estrada e o desejo artístico que o move: encontrar no palco a realização impossível e sublime de um show perfeito. Com a palavra, Andrés Calamaro, também conhecido como El Salmón (nome do álbum quíntuplo com 103 faixas lançado em 2000).
Há muitos fãs da música argentina que estão encantados com a possibilidade de te ver ao vivo no Brasil, afinal, o Brasil ainda parece ser um mercado secundário (talvez terciário ou quaternário) para os músicos argentinos. Mas para você, o que significa essa turnê no Brasil?
Caramba, os países não são ‘mercados’. Eu não tenho muitas chances de fazer turnê no Brasil, e me agrada ser apenas um espectador da cultura e da música brasileira — também não sou um grande conhecedor, nem um explorador ousado. Vamos com humildade, em busca de boas sensações no palco e de deixar uma boa impressão.
Na sua primeira apresentação solo no Brasil, em Porto Alegre (2019), você cantou ‘Nervos de Aço’ (Lupicínio) e ‘Os Argonautas’ (Caetano). Também mencionou que gosta muito de Adoniran Barbosa. O que podemos esperar do espetáculo em São Paulo? Há algo que você gostaria de ver ou fazer na terra de Adoniran?
‘Nervos de Aço’ e ‘Os Argonautas’, assim como o encanto boêmio de Adoniran Barbosa, são monumentos musicais. Vamos tocar no Brasil com humildade, nesse primeiro trecho da turnê deste ano. O Brasil é um gigante da música — vamos subir nesses palcos com muito respeito.
Aliás, logo após esse show de 2019, você fez um post emocionante dizendo que Jorge Drexler te convenceu a vir ao Brasil depois de muitos anos. Qual argumento o uruguaio utilizou?
É verdade, o Jorge insistiu para que eu visitasse Porto Alegre — lá existe um público atento, que conhece bem os nossos discos. Foi uma surpresa. Eu não fazia ideia de que alguém no Brasil tivesse escutado nossas gravações.
Sua relação com o Brasil sempre foi mais discreta em comparação com outros artistas argentinos. Mas sua publicação logo após aquele primeiro show em 2019 estava cheia de referências à cultura brasileira e à história da música na América Latina. Você conhece o que se produz hoje na música brasileira? Como vê essa relação entre os dois países na arte?
“E em seu destino inconstante, só o gaúcho vive errante por onde a sorte o conduz” (Nota: trecho do livro ‘La vuelta de Martín Fierro’ (1879), de José Hernández, também citado na letra de ‘Tantas Veces’, do álbum “Bohemio”, que Calamaro lançou em 2013). É verdade, não tenho a sorte de ter me relacionado mais com os músicos do Brasil, mas gravamos um dueto com Milton Nascimento para o disco “Dios los Cría” (2021), um grandíssimo honor.
Você viveu diferentes momentos na indústria musical, com muitos sucessos, desde o vinil até o streaming. O que você acha que se perdeu e o que se ganhou nesse processo de mudança de formatos?
Sinceramente, não sei explicar esse grande momento atual nas turnês e o fervor do público. Não fui muito bem-sucedido no formato de Long Play, as boas colheitas em CD foram breves, e imagino que o streaming tem suas coisas boas e ruins. Eu me limito a buscar o impossível no palco, um recital perfeito, impossível. Como os toureiros ‘de arte’ que esperam um touro que lhes permita uma performance impecável, que acontece poucas vezes na vida. Prefiro não saber o que perdemos com as mudanças e as decisões equivocadas.
Em algumas lojas de discos da Espanha, pode ser difícil encontrar uma seção robusta de rock e pop argentino. Mas você foi à Espanha há muitos anos e conquistou um espaço importante, com discos e turnês aclamadas, assim como Jorge Drexler, por exemplo. Na verdade, em 2021, ambos participaram do disco “El Madrileño”, de C. Tangana, que foi um grande sucesso. Mas qual é a diferença de ser músico na Espanha? Como você vê o mercado e a recepção do público europeu em relação aos artistas da América Latina?
Os artistas latinos são mais admirados do que nunca na Espanha, não só os brasileiros ou cubanos, mas também os jovens rioplatenses de forma urbana. Agora, a Espanha é a Espanha: tem uma certa ‘dificuldade em admirar’, demoram para reconhecer. Muitas vezes, se regozijam na derrota dos ‘ídolos’. Deviam se confessar com mais frequência.
No ano passado, você saiu em defesa do disco de Charly García “La Lógica del ‘Scorpión’”. Houve alguma ironia? Ou realmente algo te comoveu nesse álbum? O quê?
Estávamos de turnê, chegando a um hotel nas Ilhas Baleares, com tempo para ouvir o disco tranquilo, sem pressa, e pude – ou quis – apreciar os detalhes. Gostei de ouvir o disco completo, sereno e sem expectativas.
Recentemente foi anunciado a aposentadoria dos palcos do espanhol Joaquín Sabina. Na Argentina, um grande retorno de Charly García às turnês já parece pouco provável. No Brasil, Milton Nascimento e Gilberto Gil anunciaram também a aposentadoria. Como você vê este momento da história, em que grandes nomes que ajudaram a construir parte da música que conhecemos hoje estão se retirando?
Me parece algo natural — a passagem do tempo deve ser celebrada. Esses senhores tiveram a chance de serem grandes e souberam aproveitá-la. A gente canta enquanto o corpo aguenta; os mais afortunados, talvez, consigam conquistar um modo de vida através da música.
Você é um dos artistas mais prolíficos da Argentina, com vários discos lançados, muitos projetos e colaborações com praticamente todos os nomes mais importantes do país. Depois de tudo isso, ainda há algum desejo artístico a ser cumprido? O que ainda falta conquistar?
Meu desejo são as boas sensações no palco. Me identifico com outros ofícios solitários — como toureiros, pilotos de corrida ou boxeadores — em que tudo se reflete na apresentação anterior e na que vem a seguir. É o mesmo nas pistas, no ringue ou na arena.
Por último, pedi ao músico Frank Jorge (do sul do Brasil, muito conhecido por sua carreira solo e com a Graforréia Xilarmônica e Os Cascavelletes) que te enviasse duas perguntas. Aqui estão:
Na sua apresentação em Porto Alegre em 2019, eu te dei uma garrafa de vinho de Mendoza, um CD de Frank Sinatra e Tom Jobim, CDs com minhas músicas, mas um idiota ficou pelado bem perto do camarim e fiquei frustrado, sem conseguir te conhecer ao vivo, cara a cara. Sempre gostei muito da sua música ‘Los Chicos’, e sempre falei para todo mundo que essa música é um grande sucesso. Com minha parceira, assisti a duas apresentações suas na Movistar Arena e, em uma delas, você fez um bis com ‘Los Chicos’ com projeções muito lindas de músicos que já se foram. Quanto ainda existe de Spinetta, Cerati e Federico Moura na sua vida, nas suas criações?
Caramba, Frank… o espontâneo nu dá um certo colorido ao nosso desencontro. Eu não lembrava da cena, mas sem dúvida acrescenta um toque especial à nossa estreia no Brasil. Espero que os nudistas não atrapalhem o nosso abraço adiado. Não sou apegado à nostalgia e sigo a única direção possível do tempo, mas esses ilustres companheiros continuam presentes, de uma forma ou de outra. Sempre admirei muito o Federico — tudo nele: a construção sonora do Virus, as letras das músicas, sua presença, tanto pessoal quanto no palco, aquele magnetismo que ele irradiava. Gustavo (Cerati) era ‘mais músico’ e imagino que também admirasse tanto o Federico quanto o Luis Alberto. Sinto falta dele, claro. Talvez hoje estivéssemos celebrando turnês juntos, somando forças e viajando. Gosto de acreditar que sim. Luis Alberto foi uma lenda viva — antes dos trinta anos já tinha assinado uma obra insólita, original e poética. Era uma pessoa amável e exigente, hospitaleira com quem o seguia, embora fosse radical com a música que realmente lhe interessava. Eu o conheci ainda adolescente, e lembro de cada detalhe: a guitarra que ele tinha e o tabaco que fumava.
Há alguma música sua em especial que foi construída mais inspirada em algum som específico de outros artistas, embora exista uma marca muito forte da sua própria personalidade no seu trabalho (é claro)?
Não tenho disciplina para compor ‘com influências’, e lamento um pouco por isso. Deixar que a música ‘surja’ — ou chegue — é um risco, porque nem sempre filtramos o suficiente para nos manter dentro de um conceito. Teria gostado de ser mais firme nessas questões, copiar melhor e desconfiar mais do desejo… mas o desejo é uma tentação sempre interessante.
– Diego Queijo é jornalista! Acompanhe: instagram.com/diegoqueijo.