Divórcio: como funciona a divisão de bens e dívidas
Saber escolher o regime de bens em um casamento é essencial para prevenir conflitos e alinhar expectativas financeiras

Somente após descobrir uma traição é que Maria* procurou entender o que era necessário para se divorciar. E, nesse momento, se decepcionou mais uma vez. Ao levantar a documentação sobre bens, constatou que a casa de campo estava no nome da sogra. Mas o financiamento que servia para pagar as prestações da propriedade estava em seu nome.
Sem saber detalhar como tudo isso pôde acontecer, a dentista, de 44 anos, que contava com aquela casa para ser seu novo lar, só ficou com as dívidas. Com o emocional abalado e sem autonomia financeira, regressou à casa dos pais. Não encontrou, naquele momento, outra opção. Essa é uma das muitas histórias enfrentadas por mulheres na partilha de bens após uma separação.
Quando duas pessoas decidem se casar, as primeiras coisas que vêm à mente são amor, sonhos e celebrações. No entanto, um aspecto essencial — e muitas vezes ignorado — é a escolha do regime de bens.
Esse é o conjunto de regras que define como o patrimônio do casal será administrado durante a união e como será partilhado em caso de separação ou morte.
Parece frio e racional demais? Talvez. Mas entender essas regras pode fazer toda a diferença na vida financeira de uma mulher. Escolher o regime de bens não significa falta de confiança, e sim uma forma de prevenir conflitos e alinhar expectativas financeiras. Afinal, amor e dinheiro caminham juntos, e lidar com isso de forma consciente ajuda a construir uma parceria mais sólida.
Negócios à parte?
Os regimes de bens refletem as dinâmicas sociais e econômicas de cada época. No Brasil, até o início do século XX, predominava a transferência de poder econômico das mulheres para os maridos.
“Historicamente, o Código Civil de 1916 previa a comunhão universal de bens como regime legal [padrão], sendo imutável no casamento. A Lei do Divórcio de 1977 trouxe uma mudança importante ao instituir a comunhão parcial de bens como regime legal. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a comunhão parcial de bens tornou-se o padrão para casamentos e uniões estáveis”, afirma a advogada especialista em processo civil Grazielle Turíbio.
Essas mudanças refletem um esforço legislativo para acompanhar a evolução da sociedade, que demanda maior autonomia e igualdade nas relações matrimoniais. Hoje, no Brasil, os casais podem escolher entre quatro regimes principais.
A Comunhão Parcial de Bens é opção aplicada automaticamente, caso os noivos não façam um pacto antenupcial. Nela, os bens adquiridos durante o casamento, com exceção de heranças e doações, são compartilhados igualmente entre os cônjuges. Bens adquiridos antes da união ou por sub-rogação (quando algo substitui um bem anterior) permanecem particulares.
“O regime de separação total de bens pode gerar situações desvantajosas para mulheres que se dedicam exclusivamente ao lar”
Vanessa Paiva, advogada
Na Separação Total de Bens, cada cônjuge mantém o controle exclusivo de seu patrimônio, sejam bens adquiridos antes ou durante o casamento. Não há partilha em caso de divórcio, exceto quando é comprovado que os bens foram adquiridos em colaboração. É necessário firmar um pacto antenupcial para adotar esse regime.
Oposto da separação total, na Comunhão Universal de Bens, independentemente de sua origem ou data de aquisição, todos os bens são comuns ao casal, incluindo aqueles adquiridos antes do matrimônio. Contudo, heranças ou doações com cláusulas de incomunicabilidade permanecem particulares.
E, por último, a Participação Final nos Aquestos. Nesse regime, durante o casamento, cada cônjuge administra seus bens separadamente, como no regime de separação total. Porém, em caso de dissolução, os bens adquiridos durante o casamento são partilhados, como na comunhão parcial. Embora seja uma opção legal, esse regime ainda é pouco compreendido e raramente escolhido.
Divórcio e partilhas
Os brasileiros têm se divorciado cada vez mais e mais rápido, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados do Registro Civil divulgados em 2024, referentes a 2022, mostram que houve 970 mil casamentos e 420 mil divórcios (judiciais e extrajudiciais) — 8,6% a mais que no ano anterior, com média de um divórcio para cada 2,3 casamentos.
Em 2010, essa relação era de 1 divórcio para cada 4 casamentos. Os dados revelam também que quase a metade (47,7%) dos divórcios acontece menos de dez anos após o casamento. A maior parte deles (69%) é feita dentro do regime de comunhão parcial de bens.
Há aspectos que poderiam, entretanto, ser revisados para atender melhor às demandas da sociedade contemporânea, de acordo com Vanessa Paiva, advogada especialista em Direito da Família e Sucessões.
“Um exemplo: o regime de separação total de bens pode gerar situações desvantajosas para mulheres que se dedicam exclusivamente ao lar. Um clássico ocorre quando a mulher abre mão de sua carreira para cuidar da casa e dos filhos, enquanto o marido se dedica ao trabalho e acumula patrimônio individual. Em caso de divórcio, como os bens adquiridos durante o casamento podem pertencer exclusivamente ao cônjuge que os registrou, ela pode sair da união sem qualquer participação no patrimônio construído em conjunto”, pontua.
Momentos críticos
A escolha do regime de bens tem consequências diretas em dois momentos críticos: o divórcio e a herança. No caso de separação, o regime determina como o patrimônio será dividido, enquanto na sucessão, ele influencia o que será herdado pelos cônjuges e outros familiares. “Precisamos de uma advocacia que não só oriente os casais sobre os impactos desses regimes, mas que também lute por mudanças que reconheçam todas as formas de contribuição ao casamento, incluindo o trabalho invisível desempenhado em casa, na maior parte das vezes pelas mulheres”, analisa Vanessa.
69% dos divórcios acontecem em regime de comunhão parcial de bens
A falta de informação é, segundo as advogadas, o maior obstáculo enfrentado pelos casais ao escolher um regime de bens. “É necessário que as pessoas se relacionem de forma consciente para compreender seus direitos e deveres. Por isso, é sempre recomendado que se procure um advogado especializado em Direito de Família”, pondera Amanda Helito, advogada membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/SP.
Para ela, um pacto antenupcial pode garantir maior segurança e transparência. Também é importante que as mulheres, além de compreenderem o regime de bens escolhido no casamento, mantenham um controle financeiro durante a união.
Embora menos comum, é possível alterar o regime de bens durante o casamento. Para isso, é necessário entrar com uma ação judicial e demonstrar que a mudança não prejudicará terceiros, como credores ou herdeiros. Essa flexibilidade permite que os casais adaptem o regime às mudanças de vida, como o nascimento de filhos ou o início de um negócio conjunto.
Escolher o regime de bens é uma decisão que vai além de um simples detalhe burocrático. É um ato de planejamento e proteção, que pode evitar conflitos e assegurar maior justiça em momentos de transição, como divórcios e sucessões. Ao optar por um regime de bens, a informação e o diálogo são fundamentais. Afinal, a relação entre amor e patrimônio, embora delicada, não precisa ser conflituosa.
Surpresa Desagradável
Casos comuns que acontecem por desconhecimento sobre o regime de bens:
1. Perda de bens acumulados antes do casamento
No caso do regime de comunhão universal de bens, muitas mulheres descobrem apenas durante o divórcio que bens adquiridos antes da união, mesmo que sejam exclusivamente de um dos cônjuges, passam a ser compartilhados. Isso pode gerar muita frustração, especialmente quando elas acreditavam que esses bens eram “intocáveis”.
2. Desproteção financeira por conta da separação total de bens
Em casamentos regidos pela separação total de bens, algumas mulheres se surpreendem ao perceber que não têm direito ao patrimônio acumulado pelo parceiro durante a união. Isso é comum em relações onde elas priorizam o cuidado com a casa ou a criação dos filhos, deixando de construir independência financeira.
3. Litígios sobre bens comuns na comunhão parcial
No regime de comunhão parcial de bens, a divisão dos bens adquiridos durante o casamento pode se tornar um campo de batalha judicial. A falta de transparência do parceiro sobre investimentos, negócios ou dívidas muitas vezes prejudica a mulher, que pode não ter conhecimento detalhado do patrimônio do casal.
4. Endividamento inesperado no regime de comunhão universal
Quando o regime é de comunhão universal, as dívidas contraídas pelo cônjuge são compartilhadas. Muitas mulheres se deparam com dívidas ocultas ou inesperadas no momento da separação, o que compromete sua estabilidade financeira após o divórcio.
5. Confusão sobre bens herdados ou doados
Mesmo no regime de comunhão parcial, bens herdados ou recebidos como doação não entram na divisão. Porém, o desconhecimento dessa regra pode levar mulheres a aceitar partilhas desfavoráveis ou abrir mão de direitos por medo de litígios.
6. Desvantagem em negócios e empreendimentos familiares
No caso da separação total, a mulher pode não ter direitos sobre a empresa que ajudou a construir indiretamente. Já na comunhão parcial ou universal, ela pode enfrentar dificuldades para avaliar o real valor dos ativos e exigir sua parte de forma justa.
7. Impacto emocional e psicológico
Além das questões financeiras, a descoberta tardia sobre o regime de bens e seus efeitos pode gerar sentimentos de injustiça, traição e insegurança, agravando o impacto emocional de uma separação.
8. Problemas legais devido à informalidade
Muitas mulheres que vivem em união estável sem formalização enfrentam o regime de comunhão parcial automaticamente. No entanto, a falta de um contrato específico pode dificultar a comprovação de direitos no momento do divórcio.
Fonte: advogadas Grazielle Turibio, Amanda Helito e Vanessa Paiva
*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados
Assine a newsletter de CLAUDIA
Receba seleções especiais de receitas, além das melhores dicas de amor & sexo. E o melhor: sem pagar nada. Inscreva-se abaixo para receber as nossas newsletters:
Acompanhe o nosso WhatsApp
Quer receber as últimas notícias, receitas e matérias incríveis de CLAUDIA direto no seu celular? É só se inscrever aqui, no nosso canal no WhatsApp.
Acesse as notícias através de nosso app
Com o aplicativo de CLAUDIA, disponível para iOS e Android, você confere as edições impressas na íntegra, e ainda ganha acesso ilimitado ao conteúdo dos apps de todos os títulos Abril, como Veja e Superinteressante.