Dias de Batávia (1)

Quando há uma dezena de anos passei um Natal na ilha de Bali, após uma atribulada viagem que me obrigou a parar em Surabaia, devido a uma chuvada tropical, fiquei com vontade de conhecer a Indonésia. A ilha dos deuses é para muitos um local de férias paradisíaco, dependendo para onde se vai e se está, mas não serve de referência social, política, cultural, económica ou mesmo religiosa do país a que pertence.  Quanto a este último aspecto basta pensar na forte componente hindu da população de Bali. Mais de 80% dos seus residentes professa o hinduísmo, apenas 14% seguem o Islão, e 2,5% afirmam-se cristãos, por contraposição ao resto do território, onde os muçulmanos representam mais de 87% da população e os protestantes e católicos ultrapassam 10%. Recentemente pude concretizar esse sonho antigo, graças à lembrança de um amigo que não se esqueceu de me perguntar se estava disponível para o acompanhar numa viagem de trabalho, que para mim seria mais de turismo e de descoberta de novos lugares.  A perspectiva de visitar, ainda que uma ínfima parte, do maior país muçulmano do mundo, que depois de libertado das amarras do colonialismo holandês e da ocupação japonesa, no final da II Guerra Mundial, sobreviveu aos tempos de Sukarno e às três décadas da ditadura de Suharto, até começar a trilhar, a partir de 21 de Maio de 1998, na sequência da resignação do último em razão das manifestações e rebeliões populares, a estrada da democracia, não era oportunidade que pudesse desperdiçar.   E de democracia se pode efectivamente falar. Em Fevereiro de 2024 realizou-se a 5.ª eleição geral democrática num universo de quase 205 milhões de eleitores, distribuídos por mais de 824.000 secções de voto, com uma taxa de participação superior a 80%, para escolher o presidente, o vice-presidente e eleger a câmara baixa do seu parlamento, DPR, a mais importante de um sistema que se tornou bicameral em 2004. À DPR compete a adopção de legislação, a aprovação do orçamento e a ratificação dos acordos internacionais em que a república seja parte, não podendo ser suspensa ou dissolvida pelo Presidente, nos termos do art.º 7.º - C da sua Constituição", o que revela bem o seu peso num sistema de governo presidencial. Como qualquer democracia, em especial jovem, tem enfrentado alguns problemas. Não será de estranhar quando até as democracias consolidadas do velho mundo são fustigadas pelos ventos iliberais, nacionalistas exacerbados e populistas. E este país, que possui mais de 280 milhões de habitantes, tem quase dois milhões de quilómetros quadrados, e mais de 17 mil ilhas, no que constitui o maior estado arquipelágico do globo, não é excepção. Isso não impede, todavia, a Indonésia de ser hoje considerada uma democracia robusta no contexto asiático, logo a seguir ao Japão, e país classificado como o “mais democrático do Sudeste Asiático”. Para tal concorre uma democracia eleitoral estável há mais de duas décadas, com eleições livres, competitivas, multipartidárias e regulares, onde não falta uma comunicação social plural, apesar de se ter assistido nos últimos anos a uma deterioração do ambiente geral da sociedade civil e ao aumento de algumas restrições, a que não será alheia a existência de partidos relativamente frágeis e muito dependentes das elites político-empresariais, onde ainda se nota uma forte influência militar, sujeito a elevados níveis de clientelismo e “compra de votos”, apesar de não se terem verificado regressões graves, ao contrário do que nos últimos anos sucedeu na Tailândia e nas Filipinas (Hicken, 2020, Indonesia’s in Comparative Perspective). Com este pano de fundo, e sabendo que ali iria passar o Primeiro de Maio, desembarquei no recente Terminal 3, estando já em desenvolvimento o Terminal 4, do Jakarta Soekarno-Hatta International Airport, na ilha de Java. Inaugurado em 2016, com capacidade para movimentar mais de 25 milhões de passageiros por ano, este terminal é um hino à arquitectura, ao ambiente e ao arrojo da construção. Na retina ficou-me a amplitude dos espaços, em especial a sua organização, destinada a facilitar a circulação e a vida aos passageiros. Também a informação adequada, a luz, a presença constante do verde das suas plantas, e, para quem fica enojado de cada vez que passa pelo Aeroporto Humberto Delgado, o asseio de tudo, a começar pelas casas de banho permanentemente limpas, funcionais e bem cheirosas, onde nada falta. À chegada, a saída das bagagens é feita por tapetes rápidos, silenciosos e imaculadamente limpos, não se ouvindo as malas a caírem desamparadas e a baterem com força nas protecções laterais, pois há bagageiros atentos e de luvas, sempre prontos a ajeitarem os volumes para que nada se danifique. Menos de cinco minutos depois de ali chegar recolhi a minha mala. Os responsáveis da ANA, e quem vai tutelar a construção – um dia, que espero ainda ver chegar em vida – do futuro aeroporto de Lisboa, deviam colocar os olhos no que ali e noutros locais de bom se fez, aprendendo alguma c

Mai 5, 2025 - 16:09
 0
Dias de Batávia (1)

T3Jakarta.jpeg

Quando há uma dezena de anos passei um Natal na ilha de Bali, após uma atribulada viagem que me obrigou a parar em Surabaia, devido a uma chuvada tropical, fiquei com vontade de conhecer a Indonésia.

A ilha dos deuses é para muitos um local de férias paradisíaco, dependendo para onde se vai e se está, mas não serve de referência social, política, cultural, económica ou mesmo religiosa do país a que pertence. 

Quanto a este último aspecto basta pensar na forte componente hindu da população de Bali. Mais de 80% dos seus residentes professa o hinduísmo, apenas 14% seguem o Islão, e 2,5% afirmam-se cristãos, por contraposição ao resto do território, onde os muçulmanos representam mais de 87% da população e os protestantes e católicos ultrapassam 10%.

Recentemente pude concretizar esse sonho antigo, graças à lembrança de um amigo que não se esqueceu de me perguntar se estava disponível para o acompanhar numa viagem de trabalho, que para mim seria mais de turismo e de descoberta de novos lugares. 

A perspectiva de visitar, ainda que uma ínfima parte, do maior país muçulmano do mundo, que depois de libertado das amarras do colonialismo holandês e da ocupação japonesa, no final da II Guerra Mundial, sobreviveu aos tempos de Sukarno e às três décadas da ditadura de Suharto, até começar a trilhar, a partir de 21 de Maio de 1998, na sequência da resignação do último em razão das manifestações e rebeliões populares, a estrada da democracia, não era oportunidade que pudesse desperdiçar.  

E de democracia se pode efectivamente falar. Em Fevereiro de 2024 realizou-se a 5.ª eleição geral democrática num universo de quase 205 milhões de eleitores, distribuídos por mais de 824.000 secções de voto, com uma taxa de participação superior a 80%, para escolher o presidente, o vice-presidente e eleger a câmara baixa do seu parlamento, DPR, a mais importante de um sistema que se tornou bicameral em 2004. À DPR compete a adopção de legislação, a aprovação do orçamento e a ratificação dos acordos internacionais em que a república seja parte, não podendo ser suspensa ou dissolvida pelo Presidente, nos termos do art.º 7.º - C da sua Constituição", o que revela bem o seu peso num sistema de governo presidencial.

Como qualquer democracia, em especial jovem, tem enfrentado alguns problemas. Não será de estranhar quando até as democracias consolidadas do velho mundo são fustigadas pelos ventos iliberais, nacionalistas exacerbados e populistas. E este país, que possui mais de 280 milhões de habitantes, tem quase dois milhões de quilómetros quadrados, e mais de 17 mil ilhas, no que constitui o maior estado arquipelágico do globo, não é excepção.

Isso não impede, todavia, a Indonésia de ser hoje considerada uma democracia robusta no contexto asiático, logo a seguir ao Japão, e país classificado como o “mais democrático do Sudeste Asiático”. Para tal concorre uma democracia eleitoral estável há mais de duas décadas, com eleições livres, competitivas, multipartidárias e regulares, onde não falta uma comunicação social plural, apesar de se ter assistido nos últimos anos a uma deterioração do ambiente geral da sociedade civil e ao aumento de algumas restrições, a que não será alheia a existência de partidos relativamente frágeis e muito dependentes das elites político-empresariais, onde ainda se nota uma forte influência militar, sujeito a elevados níveis de clientelismo e “compra de votos”, apesar de não se terem verificado regressões graves, ao contrário do que nos últimos anos sucedeu na Tailândia e nas Filipinas (Hicken, 2020, Indonesia’s in Comparative Perspective).

Com este pano de fundo, e sabendo que ali iria passar o Primeiro de Maio, desembarquei no recente Terminal 3, estando já em desenvolvimento o Terminal 4, do Jakarta Soekarno-Hatta International Airport, na ilha de Java.

Inaugurado em 2016, com capacidade para movimentar mais de 25 milhões de passageiros por ano, este terminal é um hino à arquitectura, ao ambiente e ao arrojo da construção.

Na retina ficou-me a amplitude dos espaços, em especial a sua organização, destinada a facilitar a circulação e a vida aos passageiros. Também a informação adequada, a luz, a presença constante do verde das suas plantas, e, para quem fica enojado de cada vez que passa pelo Aeroporto Humberto Delgado, o asseio de tudo, a começar pelas casas de banho permanentemente limpas, funcionais e bem cheirosas, onde nada falta.

À chegada, a saída das bagagens é feita por tapetes rápidos, silenciosos e imaculadamente limpos, não se ouvindo as malas a caírem desamparadas e a baterem com força nas protecções laterais, pois há bagageiros atentos e de luvas, sempre prontos a ajeitarem os volumes para que nada se danifique. Menos de cinco minutos depois de ali chegar recolhi a minha mala. Os responsáveis da ANA, e quem vai tutelar a construção – um dia, que espero ainda ver chegar em vida – do futuro aeroporto de Lisboa, deviam colocar os olhos no que ali e noutros locais de bom se fez, aprendendo alguma coisa que pudesse ser útil aos portugueses e a quem nos visita, algo que nos honrasse em vez de permanentemente nos envergonhar.

P1120414.JPG

A aerogare está relativamente longe do centro da cidade, o que não é impeditivo que os 20 Km que nos levam até ao coração de Jacarta se façam bem, por uma óptima auto-estrada e vias rápidas e sem buracos, nem sucessivas tampas de electricidade, juntas ou desníveis no pavimento que dêem cabo das suspensões e dos amortecedores dos veículos.

Saí de limusina, é certo, ao princípio da noite, mas há transportes públicos rápidos e eficientes, uma linha de metro (MRT) que faz a ligação ao centro da cidade, mini-autocarros, e os táxis da Blue Bird, da Silver Bird, da Grab e de outras empresas, que são novos, baratos, silenciosos, asseados e fiáveis, funcionando com taxímetro. Os motoristas são atenciosos, simpáticos, a maioria falando um inglês muito aceitável, garantido uma viagem tranquila, sem sobressaltos, sem que o passageiro se sinta assaltado ou intimidado pela rudeza de modos do condutor.

DSC05357.JPG

Educação e simpatia, salvo uma ou outra raríssima excepção, que aqui escuso de referir, costumam ser uma marca distintiva dos asiáticos. E nisso os indonésios voltaram a comprová-lo. Se à chegada havia uma viatura à minha espera, depois pude andar sozinho, durante vários dias, incógnito por toda a cidade, usando os seus táxis, tuk-tuk, e os autocarros eléctricos da TransJakarta e de um outro operador.

Fi-lo na maioria das vezes com um passe recarregável, adquirido na bilheteira do Monas (Monumento Nacional) logo no dia seguinte à minha chegada. O cartão é válido por 30 dias e permite aceder a diversos serviços, incluindo a entrada nalguns museus, para o que contei com a ajuda do pessoal em serviço nas diversas estações e dos múltiplos jovens, estudantes, homens e mulheres com quem me cruzei e a quem tive de recorrer algumas vezes para me orientar numa área metropolitana que é quatro vezes maior do que Londres e com 34 milhões de residentes.

DSC05344.JPG

Deixo já aqui nesta breve introdução uma nota para o serviço de autocarros da TransJakarta. Numa cidade que me diziam, há anos, ter um ar irrespirável, encontrei uma atmosfera muito mais limpa e pude ver o azul do céu, coisa que muitas vezes não consigo fazer na cidade onde vivo devido à poluição permanente e à constante insalubridade do ar que nos envolve.

P1120423.JPG

As linhas da TransJakarta funcionam como se fossem de metro ligeiro. Têm corredores próprios na maioria dos percursos, onde não entram táxis nem motociclos. Deslocam-se em boa velocidade, sem constrangimentos, com ar condicionado e praticamente sem ruído, sabendo-se sempre de antemão quantos minutos, aproximadamente, levaremos a fazer um percurso, ou quanto tempo falta para a chegada do autocarro que aguardamos.

No seu interior não se ouvem telemóveis a toda a hora, nem gente a falar aos altos berros contando as agruras da vida para todos os outros. Ninguém fala em alta voz, e não é preciso andar aos encontrões, ainda que à hora de ponta sigam cheios. Há sempre alguém com um sorriso que nos quer dar prioridade, se apresenta e pergunta de onde somos e para onde vamos, predisposição reforçada quando se apercebem da nossa origem, logo invocando os nomes dos novos heróis do futebol lusíada.

P1120436.JPG

E se ali mais acima falava em estações é porque em muitos locais disso mesmo se trata, visto que não são vulgares paragens de autocarro.

Construídas, por vezes, no meio das vias, possuem cafés acolhedores e lojas, havendo algumas com boas vistas e em locais emblemáticos da cidade, onde muita gente vai tirar fotografias. As mais modernas, como na zona de Thamrin, onde estão concentradas várias embaixadas e modernos hotéis, foram elevadas, como se fossem estações de metropolitano, com várias portas de vidro, que se abrem à paragem dos veículos, estando as diversas linhas de autocarros, consoante os números, alocadas a determinados pontos do cais. Solução prática e funcional que faz dos autocarros da TransJakarta, nos períodos de maior intensidade do trânsito, que é em regra constante, a melhor opção para uma pessoa se deslocar na grande metrópole. 

TransJKT30042025.jpg