Como os Estados Unidos se tornaram uma potência do futebol feminino?
Legislação assinada no início da década de 70 ajuda a explicar sucesso do esporte feminino no país O post Como os Estados Unidos se tornaram uma potência do futebol feminino? apareceu primeiro em MKT Esportivo.

Recém passado o Dia Internacional das Mulheres, gostaria de levantar um assunto que sempre me gerou curiosidade e que só passou a fazer sentido para mim quando vim para os Estados Unidos fazer meu mestrado em gestão esportiva. Por que os Estados Unidos possuem um histórico tão vencedor no futebol feminino e não conseguem ser competitivos no masculino?
A resposta para essa pergunta, quem sabe, pode nos ajudar a interpretar as políticas de ação afirmativa implementadas no futebol brasileiro ao longo das últimas décadas e medidas que podem ser tomadas para melhorar o esporte feminino brasileiro.
Para contextualização, a seleção americana é sem qualquer sombra de dúvidas a mais competitiva entre as mulheres. Nos Jogos Olímpicos, por exemplo, as americanas têm um total de cinco medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze em oito edições, ficando de fora das semifinais apenas na edição de 2016, no Rio de Janeiro. Em Copas do Mundo, a dominância é um pouco menor, mas ainda assim bastante clara: a seleção americana é tetracampeã, uma vez vice, e semifinalista em outras três edições em um total de nove Copas disputadas até hoje. Assim como em Olimpíadas, não disputaram ao menos as semifinais uma única vez na história.
Os homens, por outro lado, apresentam um desempenho historicamente medíocre. Depois de não se classificarem para nove edições seguidas da maior competição esportiva do mundo, entre as edições de 1954 e 1986, os americanos jogaram oito das últimas nove Copas do Mundo. Dentre essas nove edições, jogaram quartas-de-final em 2002, caíram nas oitavas quatro vezes e na fase de grupos outras três. A dominância que as mulheres apresentam em competições mundiais não é vista entre os homens sequer em seu próprio continente, uma vez que o México domina a Copa Ouro com quase o dobro de títulos que os americanos.
Feita essa introdução, o que explicaria essa diferença? A melhor explicação para essa discrepância vem de uma legislação federal assinada em 1972, chamada Title IX, que proíbe discriminação de gênero em escolas e outros programas educacionais que recebam verbas federais. A legislação é bastante abrangente, cobrindo desde temas como políticas de vestimenta até assédios e violências sexuais, e sequer menciona a palavra “esporte” em seu texto original. Ainda assim, suas maiores repercussões se dão ao redor de programas esportivos em escolas e universidades. Para entender como uma legislação que sequer menciona a palavra “esporte” mudou completamente o cenário esportivo americano, é preciso reconhecer a importância dos esportes – e do futebol americano, principalmente – para high schools e universidades americanas.
Os Estados Unidos possuem oito estádios com capacidade acima de 100 mil lugares, sendo todos eles usados para partidas de futebol americano universitário. Entre os vinte maiores do país, dezessete são estádios universitários. O estádio da minha universidade, por exemplo, é o vigésimo maior do país, sendo maior do que qualquer estádio brasileiro. A Universidade de Michigan, de forma ainda mais impressionante, tem o segundo maior estádio do mundo, com 107.601 lugares de capacidade, e não tem grandes dificuldades em lotá-los para suas partidas. De forma resumida, nada leva mais gente aos estádios no mundo do que o futebol americano universitário: enquanto a NFL teve um total de 18,5 milhões de ingressos vendidos em 2022, o futebol americano universitário levou 42,3 milhões. A Premier League, para efeito de comparação, levou “apenas” 14,7 milhões de torcedores aos estádios na última temporada.
Dito isso, o Title IX exige que universidades ofertem oportunidades iguais para homens e mulheres em diversas frentes, sendo que o Departamento de Educação fiscaliza uma lista de onze exigências relacionadas aos esportes. Entre essas exigências, estão incluídos gastos com instalações esportivas e moradias, calendários de treinamentos e competições e, principalmente, número de bolsas esportivas. Atletas universitários frequentemente recebem bolsas para jogar pelas universidades, e a legislação define que o número de bolsas ofertadas por gênero deve ser igual à divisão percentual de matrículas entre gêneros. Dessa forma, se 55% dos alunos de uma universidade são mulheres, 55% das bolsas esportivas devem ser igualmente destinadas às mulheres. Com raríssimas exceções, as universidades quase sempre possuem maioria feminina entre seus alunos, fazendo com que precisem ofertar mais bolsas para mulheres.
O problema para as universidades é que, conforme mencionei anteriormente, seus programas esportivos têm normalmente como carro-chefe o futebol americano, que é um esporte praticado unicamente por homens – ao menos em um nível competitivo. Cada time universitário de futebol americano pode ofertar atualmente 85 bolsas para seus atletas, gerando uma contrapartida de cerca de 100 bolsas a serem ofertadas para mulheres, normalmente. E é justamente dessa contrapartida que vem a melhor explicação de por que o futebol feminino é tão mais competitivo que o masculino nos Estados Unidos.
Para ajudar a explicar o racional, vou usar minha universidade, Florida State, como exemplo. Dos 19 programas esportivos atuais, apenas oito são masculinos. Se considerarmos baseball e softball versões diferentes de um mesmo esporte – sendo o baseball praticado por homens e softball por mulheres –, podemos dizer que o único esporte unicamente praticado por homens na FSU é o futebol americano. Em contrapartida, Florida State só tem times femininos de futebol, lacrosse, vôlei de praia e vôlei de quadra, e mesmo times com versões masculinas e femininas acabam sendo muito maiores entre as mulheres. O time de natação, por exemplo, conta com 32 homens e 45 mulheres. Essa diferença de gênero nos esportes universitários americanos ajuda a explicar como as mulheres se tornaram responsáveis por cerca de 70% das medalhas americanas na natação nas últimas Olimpíadas.
Voltando o foco para o futebol, a primeira divisão de futebol feminino na NCAA (o órgão responsável pelos esportes universitários nos EUA) possui um total de 351 programas, contra 48 times masculinos. São mais de sete vezes mais mulheres jogando futebol em nível universitário do que homens, o que causa repercussões em toda a cadeia de formação de atletas no país. Como muitas famílias veem no esporte a melhor chance de custear os estudos universitários de seus filhos, é absolutamente natural que meninas sejam direcionadas a esportes como futebol, softball e vôlei quando crianças, enquanto meninos normalmente fiquem mais restritos ao futebol americano.
Nas próximas duas semanas, devo publicar mais dois textos aprofundando essa discussão. O primeiro terá como enfoque entender como as regulações no Brasil – bem como a CBF – podem ajudar a alavancar o esporte feminino, da mesma forma com que o Title IX viabilizou o crescimento do esporte feminino nos Estados Unidos. O segundo terá um foco diferente, discutindo como o Brasil pode usar o já estabelecido ambiente universitário americano para melhorar seu desempenho internacional em diversas modalidades. Já publiquei um texto nesse sentido ano passado, no qual discuti o caso da Júlia Bergmann em Georgia Tech, for exemplo, mas pretendo aprofundar um pouco mais essa conversa.
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