Ao vivo: Em show de lançamento de ‘Natural’, terraplana ergue muralhas de guitarras no Sesc Belenzinho
Tão interessante quanto perceber (e se deliciar com) o alto volume foi notar que as novas canções soam saborosas ao vivo, a despeito dos vocais enterrados e dos refrões menos aparentes

texto de vídeos de Bruno Capelas
fotos de Fernando Yokota
Acompanhar o desenvolvimento de uma banda em cima do palco é algo que muitos fãs de música fazem há décadas. Mas, devido à pandemia, fazer essa análise nos últimos anos tem proporcionado aos melômanos de plantão um exercício bastante curioso: observar como grupos que tiveram um ponto de inflexão durante o período de isolamento social se desdobram sob as luzes da ribalta. No caso dos paranaenses do terraplana, sensação de 2023 com o bonito álbum shoegaze “olhar para trás”, esse estudo de caso é particularmente interessante.
Há motivos para tal. Após passar anos gravando no quarto e tocando para públicos diminutos, o quarteto formado Stephani Heuczuk (voz e baixo), Vinícius Lourenço (voz e guitarra), Cassiano Kruchelski (voz e guitarra) e Wendeu Silverio (bateria) passou a chamar a atenção após o lançamento do álbum de estreia, que cativou nostálgicos e jovens ao recuperar a sonoridade clássica dos anos 1990, em meio a uma onda de revival puxada pelas redes sociais. De uma hora para outra, o grupo passou a ser figurinha fácil em festivais, abertura de shows internacionais e até mesmo já se aventurou fora do Brasil, em uma bem sucedida turnê pelos EUA no último mês de março – período que coincidiu com o lançamento de “natural”, segundo álbum dos curitibanos.
Quem foi à comedoria do Sesc Belenzinho (que, infelizmente, nunca foi uma choperia) na noite do sábado, 5 de abril, pode testemunhar como o terraplana respondeu ao chamado do tempo, no primeiro show no Brasil após a estreia do disco nas plataformas digitais. O tempo colaborou com os curitibanos: depois de semanas de calor intenso em São Paulo, a temperatura baixou a ponto de muita gente trocar a cerveja gelada pelas módicas tacinhas de vinho servidas no amplo salão de paredes envidraçadas e confortáveis cadeiras de madeira para sentar.
Antes do início, muita gente questionava se o caráter mais aberto de “natural” em disco se repetiria no palco. Se a estreia era um disco de shoegaze digno de cartilha, o trabalho reflete um diálogo do terraplana com outras sonoridades do universo alternativo, flertando com o lado mais acessível das madrugadas da MTV nos anos 1990 – em especial, pelo estilo vocal de Stephani, com ecos não só de Rachel Goswell, mas também de momentos mais suaves de cantoras como Juliana Hatfield. Mais do que isso, a dúvida era se a abertura da sonoridade em estúdio também se desdobraria em uma banda mais afeita a dialogar com o público que lotava o lugar.
Não foi o que aconteceu: desde o início, o quarteto trocou poucas (apesar de calorosas) palavras com os presentes. Não era só a timidez típica de quem vem do estado das araucárias, mas também a exibição do aprendizado de um novo capítulo dos fundamentos do shoegaze em pleno palco. Ao contrário do que acontece na gravação, ao vivo as canções de “natural” surgem não em paredes, mas sim em verdadeiras muralhas de guitarra, construídas cartesianamente por Vinicius e Cassiano.
O som não era só cortante, mas também alto e potente, como raras vezes se viu em um show no espaço do Sesc na zona leste paulistana – cortesia não só de uma banda dedicada a extrair grande capacidade de seus instrumentos, mas também de um dos melhores técnicos de som da atualidade, Bernardo Pacheco. O volume, claro, não chega aos pés do padrão ouro do gênero (a saber: o MBV), mas mostra um posicionamento interessante – especialmente por ser capaz de envolver o público sem demagogia.
Tão interessante quanto perceber (e se deliciar com) o alto volume no local foi notar que as novas canções soam saborosas ao vivo, a despeito dos vocais enterrados e dos refrões menos aparentes que na gravação – destaque para a bonita “desaparecendo”, a pop “charlie” e a deliciosa “hear a whisper”. Outra boa novidade da banda é a presença de Cassiano se alternando com Vinicius nos vocais masculinos, fazendo a cama para Stephani brilhar discretamente, quase sussurrando ao microfone. É uma dinâmica que dá força ao espetáculo e que parece surgida da cancha recém-adquirida na turnê norte-americana, com 16 shows (!) em 14 dias.
Com o desenrolar da apresentação, também aparecem duas gratas surpresas. A primeira é a presença de alguns números do longínquo EP de estreia, “exílio”, de 2017. A outra é perceber que há momentos em que o público não só assiste (e ouve) impassível ao som dos paranaenses, mas também se permite participar cantando. Trata-se de um fenômeno que ainda não deu tempo de acontecer com as novas músicas, mas aparece nos momentos mais celebrados de “olhar para trás”, como “me esquecer”, “cais”, “memórias” e “conversas”.
Ao final, em pouco mais de uma hora de espetáculo, ainda deu tempo da banda encerrar a fatura com as duas últimas canções de “Natural” que não haviam sido tocadas: os petardos “airbag” (cujo título remete àquela banda de Oxford que… não, não é o Ride) e “morro azul”. O público pediu mais, pediu bis, mas Vinícius foi sincero ao microfone: “Não tem mais música, foi só isso que a gente ensaiou”, antes de se despedir e sair do palco. Não tem problema: o fim da noite ganhou ali um sabor especial, seja por ver os piás não cederem a um bis coreografado ou por deixar na despedida os ecos dos ruídos de guitarras e um delicioso zumbido nos ouvidos.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/