A muleta tecnológica do pós-morte transmitido online no filme 'O Senhor dos Mortos'
Tirando fora as produções de cunho moralista e/ou religioso, o tema da morte vem sendo abordado pelo cinema e audiovisual por dois vieses tecnognósticos: ou pela tecnologia prometeica que tenta ressuscitar a carne (Frankenstein), ou pela tecnologia que promete a imortalidade através do atalho de uma consciência digitalizada que transcenderia a carne graças a um upload final. Mas o emblemático diretor canadense David Cronenberg criou uma terceira via em “O Senhor dos Mortos” (The Shrouds, 2024): um cemitério/mausoléu conectado à internet que permite aos visitantes assistirem ao apodrecimento gradual da carne até aos ossos, em tempo real, de seus entes queridos enterrados, por meio de um aplicativo criptografado para iPhone. Uma muleta tecnológica que transforma o processo de luto num evento voyeurístico no qual sexo e morte se transformam em duas faces de uma mesma moeda. Até o sistema ser atacado, e o cemitério depredado, por algum tipo de ativismo: ambientalista ou contra um suposto ateísmo tecnológico. No cinema e audiovisual gnósticos, a aproximação dos temas da morte e tecnologia sempre ocorre pelo viés da Tecnognose: a ambição da imortalidade através da superação da carne mortal por meio de um atalho tecnológico que ajude a alcançar a gnose, a transcendência e a imortalidade. Primeiro pela clássica abordagem prometeica da crítica do Romantismo de Mary Shelley, rejeitando tanto o cristianismo quanto do materialismo iluminista através do sincretismo da ciência com o terreno espiritual - Alquimia, Cabala e Gnosticismo. A tentativa frustrada de tornar a carne imortal através da ressurreição pelo grande marco do progresso moderno: a eletricidade, como em Frankenstein. Ou, no século XX, em clássicos do terror B como O Cérebro Que Não Queria Morrer (1962) – clique aqui. Ou através da tecnognose cabalística da revolução digital de final de século XX: a afinidade entre gnose, tecnociência e cibercultura na qual o conteúdo da mente (a consciência) poderia ser transcodificado e, através de um upload final, habitar um computador, conquistando a imortalidade pela libertação da fraqueza da carne mortal. Viver a eternidade no céu da informação. Do clássico Robocop (1987) a filmes como Lucy (2014) e Transcendence: A Revolução (2014), está imageticamente popularizado o sonho da singularidade tecnológica dos engenheiros computacionais do Vale do Silício. Mas nada se assemelha a O Senhor dos Mortos (The Shrouds, 2024), o último e mais pessoal filme do diretor canadense David Cronenberg. Seus temas e imagens ao longo da sua filmografia se tornaram tão consistentes que acabou gerando uma terminologia indispensável: “cronenberguiano”, ao lado de filmes como, por exemplo, “linchianos” para designar o surrealismo de David Lynch. Desde Videodrome, sexo, morte, tecnologias disruptivas e horror corporal se tornaram as marcas registradas de Cronenberg. Criando quase uma subcategoria nos filmes de terror. A inspiração do filme partiu de um drama pessoal do diretor: Cronenberg vivenciou o horror corporal quando sua esposa de 43 anos, Carolyn, foi diagnosticada com um câncer que devastou seu corpo e, por fim, tirou sua vida. Originalmente, o argumento da produção foi pensado para ser uma série da Netflix. Mas depois que Cronenberg escreveu dois episódios, a plataforma de streaming cancelou o projeto. Realmente os mundos imaginados pelo diretor, no qual sexo e morte são os dois lados de uma mesma moeda numa realidade de alta tecnologia, foram demais para os critérios do que a Netflix imagina para uma série de entretenimento. O Senhor dos Mortos deve ser visto como um “filme cronenberguiano tardio” como Cosmópolis, Mapas para as Estrelas e Crimes do Futuro no sentido de que sua principal forma de ação na tela é a conversa, numa abordagem geral à narrativa devendo principalmente ao teatro e à TV pelos enquadramentos em primeiros planos. A maior parte da ação gira em torno de quatro personagens. O personagem central é Karsh (Vincent Cassel), que deu conta do luto e da sua dor interminável pela morte da esposa inventando uma espécie de muleta tecnológica: o GraveTech, um cemitério/mausoléu conectado à internet que permite aos visitantes assistirem à decrepitude física e o apodrecimento gradual até aos ossos em tempo real de seus entes queridos enterrados, por meio de um aplicativo criptografado para iPhone. Através de uma mortalha (obviamente, a versão hightech do Santo Sudário), o corpo é escaneado em alta resolução. Sabemos que a tecnologia vem criando ao longo do tempo no cinema e audiovisual (refletindo o zeitgeist social) uma série de formas de negar a morte ou de oferecer muletas para não encarar o custo psíquico de um processo de lutificação: seja por meio da clonagem criogenia ou bioengenharia (Proyecto Lázaro, 2016) ou salvos em códigos binários para serem projetados holograficamente diante os entes queridos que ficaram ou replicado por uma IA (série Sunny, 2024-). Das cinco fases principais da lutificação previsto

No cinema e audiovisual gnósticos, a aproximação dos temas da morte e tecnologia sempre ocorre pelo viés da Tecnognose: a ambição da imortalidade através da superação da carne mortal por meio de um atalho tecnológico que ajude a alcançar a gnose, a transcendência e a imortalidade.
Primeiro pela clássica abordagem prometeica da crítica do Romantismo de Mary Shelley, rejeitando tanto o cristianismo quanto do materialismo iluminista através do sincretismo da ciência com o terreno espiritual - Alquimia, Cabala e Gnosticismo. A tentativa frustrada de tornar a carne imortal através da ressurreição pelo grande marco do progresso moderno: a eletricidade, como em Frankenstein. Ou, no século XX, em clássicos do terror B como O Cérebro Que Não Queria Morrer (1962) – clique aqui.
Ou através da tecnognose cabalística da revolução digital de final de século XX: a afinidade entre gnose, tecnociência e cibercultura na qual o conteúdo da mente (a consciência) poderia ser transcodificado e, através de um upload final, habitar um computador, conquistando a imortalidade pela libertação da fraqueza da carne mortal. Viver a eternidade no céu da informação. Do clássico Robocop (1987) a filmes como Lucy (2014) e Transcendence: A Revolução (2014), está imageticamente popularizado o sonho da singularidade tecnológica dos engenheiros computacionais do Vale do Silício.
Mas nada se assemelha a O Senhor dos Mortos (The Shrouds, 2024), o último e mais pessoal filme do diretor canadense David Cronenberg. Seus temas e imagens ao longo da sua filmografia se tornaram tão consistentes que acabou gerando uma terminologia indispensável: “cronenberguiano”, ao lado de filmes como, por exemplo, “linchianos” para designar o surrealismo de David Lynch.
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Desde Videodrome, sexo, morte, tecnologias disruptivas e horror corporal se tornaram as marcas registradas de Cronenberg. Criando quase uma subcategoria nos filmes de terror.
A inspiração do filme partiu de um drama pessoal do diretor: Cronenberg vivenciou o horror corporal quando sua esposa de 43 anos, Carolyn, foi diagnosticada com um câncer que devastou seu corpo e, por fim, tirou sua vida. Originalmente, o argumento da produção foi pensado para ser uma série da Netflix. Mas depois que Cronenberg escreveu dois episódios, a plataforma de streaming cancelou o projeto. Realmente os mundos imaginados pelo diretor, no qual sexo e morte são os dois lados de uma mesma moeda numa realidade de alta tecnologia, foram demais para os critérios do que a Netflix imagina para uma série de entretenimento.
O Senhor dos Mortos deve ser visto como um “filme cronenberguiano tardio” como Cosmópolis, Mapas para as Estrelas e Crimes do Futuro no sentido de que sua principal forma de ação na tela é a conversa, numa abordagem geral à narrativa devendo principalmente ao teatro e à TV pelos enquadramentos em primeiros planos.
A maior parte da ação gira em torno de quatro personagens. O personagem central é Karsh (Vincent Cassel), que deu conta do luto e da sua dor interminável pela morte da esposa inventando uma espécie de muleta tecnológica: o GraveTech, um cemitério/mausoléu conectado à internet que permite aos visitantes assistirem à decrepitude física e o apodrecimento gradual até aos ossos em tempo real de seus entes queridos enterrados, por meio de um aplicativo criptografado para iPhone.
Através de uma mortalha (obviamente, a versão hightech do Santo Sudário), o corpo é escaneado em alta resolução.
Sabemos que a tecnologia vem criando ao longo do tempo no cinema e audiovisual (refletindo o zeitgeist social) uma série de formas de negar a morte ou de oferecer muletas para não encarar o custo psíquico de um processo de lutificação: seja por meio da clonagem criogenia ou bioengenharia (Proyecto Lázaro, 2016) ou salvos em códigos binários para serem projetados holograficamente diante os entes queridos que ficaram ou replicado por uma IA (série Sunny, 2024-).
Das cinco fases principais da lutificação previstos pela psicanálise (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), a tecnologia busca o atalho para mitigar esse processo, criando o atalho para uma falsa aceitação, mais parecida com a negação. Ao oferecer uma muleta psíquica tecnológica para a barganha.
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O Senhor dos Mortos oferece uma curiosa terceira variação tecnognóstica, depois as visões prometeicas da tecnologia e o atalho tecnológico para a imortalidade digital da consciência: a transformação da deterioração da carne de seu ente querido falecido em prazer voyeurístico online e em tempo real, fazendo uma surpreendente conexão entre prazer, sexo e morte.
Como diz a certa altura o protagonista Karsh: “Você quer os detalhes sombrios? A escuridão não me assusta...”.
O Filme
O filme começa com o pesadelo de um marido com o corpo nu de sua falecida esposa se decompondo em um túmulo e se torna cada vez mais sombrio e estranho a partir daí. Mesmo em filmes e programas de TV em que uma mulher perde uma mama para o câncer, eles geralmente não mostram como fica o peito depois. Aqui, mostram. Várias vezes. Eles também nos permitem ouvir Karsh falando sobre como seu desejo incessante pela esposa entrava em conflito com a consciência de que o câncer estava escavando seus ossos e que o sexo poderia quebrar algo.
Depois, temos um encontro às cegas ao mesmo tempo engraçado e sombrio. Myrna (Jennifer Dale), uma divorciada, está almoçando com um empresário viúvo, Karsh (Vincent Cassel), que fez fortuna como produtor de vídeos corporativos. Mas Karsh desde então mudou para outros empreendimentos. Por um lado, ele é dono do restaurante em que estão; está localizado em um cemitério, do qual ele também é parcialmente proprietário. Sua esposa, Rebecca (Diane Kruger), que morreu de câncer quatro anos antes, está enterrada do lado de fora sob uma lápide visível de onde estão.
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Antes de ser sepultada, ela foi envolta em uma mortalha metálica com um scanner embutido de alta resolução, permitindo que Karsh monitorasse seus restos mortais em decomposição por meio de um aplicativo digital que ele criou, chamado GraveTech. Puxando um feed do corpo de Rebecca em seu telefone - ou em sua lápide, que tem uma tela de vídeo embutida - Karsh pode observar a descoloração gradual de seus ossos e ampliar seu crânio agora sem pelos.
A maioria dos entes queridos enlutados sentiria repulsa por essas imagens; Karsh acha isso reconfortante. "Eu posso ver o que está acontecendo com ela", ele se maravilha. "Estou no túmulo com ela." A ideia de Karsh surgiu desse desejo inquietante de querer “ser enterrado com ela”.
Karsh está muito consumido com o corpo de sua falecida esposa - e, tão crucialmente, com a tecnologia que torna esse consumo possível - para perceber, ou mesmo se importar, com o que os outros pensam. Mas Cronenberg é consideravelmente mais conhecedor e lida com esse material descaradamente mórbido com uma brincadeira desarmante. Grande parte do diálogo tem uma planura expositiva, o que apenas aumenta a comédia sombria de todo o conceito.
Mas supreendentemente, o conceito mórbido ganhou um nicho de mercado entre endinheirados. Vemos um cemitério com um setor inteiro com lápides GraveTech – ao lado das epígrafes costumeiras, uma tela touchscreen para o parente observar a carne se transformando em ossos.
Karsch transformou sua tristeza em um casulo chique de alta tecnologia. Se transformou em titã de uma tecnologia fúnebre. A GraveTech está se popularizando globalmente; apoiado por investidores chineses, está se expandindo para túmulos islandeses e atraindo clientes influentes, entre eles um empresário húngaro em estado terminal.
A atriz Diane Kruger interpreta múltiplos papéis. Ela é a falecida esposa de Karsh, Becca, que aparece em cenas que mais parecem alucinações ou sonhos (parábolas, até) do que flashbacks típicos; e ela é também a única irmã de Becca, Terry, uma veterinária que virou tosadora de cães e testemunha a jornada de Karsch pelo luto enquanto lida com o seu próprio.
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O quarto personagem principal é o ex-marido de Terry, Maury (Guy Pearce), um guru digital que tanto Karsh quanto Terry descrevem como um "nebbish" e um "idiota", mas que possui um conjunto particular de habilidades que um dia se mostraram úteis para Karsh, e podem se mostrar novamente.
Entre suas muitas contribuições, Maury criou Hunny, uma IA assistente digital que ajuda Karsh na vida diária e ouve seus problemas – e frequentemente parece estar flertando com ele, embora sutilmente o suficiente para que Karsh geralmente ignore.
Mas apesar de estar se popularizando (principalmente entre judeus, pela proibição religiosa da cremação) a empresa GraveTech também tem inimigos invisíveis. O cemitério é vandalizado - os sistemas hackeados, as lápides das câmeras do caixão arrancadas de suas fundações – e Karsh tem agora um mistério em suas mãos.
Cronenberg constrói isso em uma conspiração obscura que pode envolver financiadores internacionais e influências russas e chinesas. Ou até eco ativistas ou mesmo religiosos fundamentalistas protestando contra o “ateísmo tecnológico”. Opções que se apagam e se reescrevem parcialmente a cada vez que é discutida.
Mas tudo isso parece ser um imenso McGuffin pensado para desviar a atenção. Parece que Cronenberg quer mesmo discutir as conexões entre sexo e morte, lembrando outro filme seu, Crash (1996) no qual personagens se excitam sexualmente ao testemunhar ou mesmo participar de acidentes automobilísticos – o quão pode ser excitante um corpo com cicatrizes, deformado pelo câncer ou fazer sexo com uma parceira cega, como em O Senhor dos Mortos.
Ao que tudo indica, David Cronenberg concorda, em parte, com a afirmação de Woody Allen de que a vida pode ser resumida a três episódios significativos: nascimento, sexo e morte.
O diretor canadense reduz a duas: sexo e morte. Certamente, pelo acúmulo de referências e alusões orientais no filme (para começar, o protagonista Karsh mora em um apartamento sereno em estilo japonês, com uma cama futon cercada por um fosso cheio de carpas), o diretor deve ser influenciado pelo taoísmo que vê a existência como um ciclo de nascimento, vida e morte, e a reencarnação como o processo de continuidade desse ciclo.
Portanto, a existência se reduziria, ao final, a unicamente dois eventos que realmente importam: sexo e morte.
Ficha Técnica |
Título: O Senhor dos Mortos |
Direção: David Cronenberg |
Roteiro: David Cronenberg |
Elenco: Vincent Cassel, Diane Kruger, Guy Pearce |
Produção: SBS Productions, Prospero Pictures |
Distribuição: Janus Films |
Ano: 2024 |
País: Canadá, França |