A flecha virou câmera: a força indígena pela lente de Natália Tupi

Natália Tupi é realizadora audiovisual e cineasta de Parintins, do Amazonas. Pelo trabalho de seus pais no Festival de Parintins, sua família foi convidada para trabalhar no carnaval de São Paulo. Assim, quando ela tinha dez anos, vieram para a cidade paulista. “Cresci nesse meio artístico, cultural, com referências de carnaval, de histórias, tudo que envolve uma escola de samba, um desfile. Acho que isso contribuiu muito para eu seguir o caminho do audiovisual, trabalhar... O post A flecha virou câmera: a força indígena pela lente de Natália Tupi apareceu primeiro em Meio e Mensagem - Marketing, Mídia e Comunicação.

Abr 22, 2025 - 13:37
 0
A flecha virou câmera: a força indígena pela lente de Natália Tupi

Natália Tupi, cineasta e realizadora audiovisual (Crédito: Pedro Karaí)

Natália Tupi é realizadora audiovisual e cineasta de Parintins, do Amazonas. Pelo trabalho de seus pais no Festival de Parintins, sua família foi convidada para trabalhar no carnaval de São Paulo. Assim, quando ela tinha dez anos, vieram para a cidade paulista. “Cresci nesse meio artístico, cultural, com referências de carnaval, de histórias, tudo que envolve uma escola de samba, um desfile. Acho que isso contribuiu muito para eu seguir o caminho do audiovisual, trabalhar com imagem, com narrativas”, conta.

Mesmo vivendo na cidade de pedra, sua família sempre aproveitava as férias para viajar para Parintins. Foi uma dessas viagens que despertou seu interesse pelo audiovisual. Aos 15 anos, seu pai comprou uma câmera, mas não sabia usá-la. Natália rapidamente pegou o jeito da coisa, registrou o resto da viagem e se encantou com a fotografia. Na faculdade, começou a fazer jornalismo porque queria fazer fotografia documental, mas logo descobriu que aquilo não era exatamente o que queria. Além disso, tinha acabado de virar mãe à época.

A soma de fatores a levou a não concluir o curso, mas ela nunca parou de estudar. “Sempre fui autodidata. Busquei aprender sozinha, fuçando”, diz. Em 2023, ganhou uma bolsa para estudar na Academia Internacional de Cinema em São Paulo. Como trabalho de conclusão do curso, dirigiu dois documentários: “Minha Câmera, Minha Flecha” e “Os Sonhos Guiam”. O lançamento oficial aconteceu em abril de 2024 e a obra rodou em festivais como a Mostra ECOA de Cinema Socioambiental de Manaus e o 3 Margens – Festival Latino Americano de Cinema, no qual ganhou o Prêmio do Júri.

Visto sua dedicação e resultados, a AIC ofereceu outra bolsa para a cineasta, que se dedica atualmente ao curso técnico da academia. “Quero inspirar cada vez mais parentes, mulheres e mães a trilharem seu próprio caminho, acreditarem em si e não deixarem de fazer. Sei que é difícil conciliar tudo, mas sigo traçando minha trajetória, realizando meus objetivos, meus filmes, alcançando mais pessoas e tentando mudar um pouco da história e da realidade dos povos indígenas”, afirma.

Além dos documentários, Natália Tupi tem uma página no Instagram chamada Ancestralidade Visual, onde documenta vivências dos povos indígenas. “Minha voz não ecoa sozinha. Quando falo, não sou só eu. Falo pelos meus ancestrais, pela minha família, pelos meus parentes que ainda estão lutando ao meu lado pra deixar um amanhã mais bem cuidado pra quem vem depois”, reflete. “A luta indígena é a mãe de todas as lutas, e é de todos nós. Sem os povos indígenas, sem a natureza, a gente não é nada, não tem nada”, continua.

Nesta entrevista ao Women to Watch, Natália Tupi conta como surgiram seus projetos e documentários, os desafios da produção audiovisual indígena e como organizações, governos e sociedade podem contribuir para fortalecer o cinema dos povos indígenas.

Meio & Mensagem: Como surgiu o Ancestralidade Visual? Qual é a proposta do projeto?

Natália Tupi: Em 2017, comprei minha própria câmera. Foi nesse mesmo ano que conheci um amigo que trabalhava na Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e precisava de alguém para registrar a situação em Roraima da saúde indígena na Casai [Casa de Apoio à Saúde Indígena Nacional]. À época, o garimpo estava no auge, então tinham muitos casos de gripe e alergias. Quando voltei de Roraima, pensei: esse material é muito importante, não quero deixar guardado e nem publicar de qualquer jeito. Precisava dar um destino certo para ele.

Decidi criar um perfil no Instagram para compartilhar esse material e fiquei procurando um nome. Lembrei de uma disciplina chamada Antropologia Visual e pensei: ao invés de Antropologia, vou usar Ancestralidade Visual. Porque era isso que eu estava fazendo, documentando minha ancestralidade. Foi assim que nasceu o projeto, e comecei a alimentar essa página com o material de Roraima. Depois voltei para Parintins, fiz outros registros, inclusive uma série chamada “Personagens de Parintins”, que também publiquei lá.

Com o tempo, o trabalho foi crescendo e começaram a me chamar pra outros trabalhos voltados para os povos indígenas. Foi aí que eu entendi que o principal objetivo desse projeto era transformar o audiovisual numa ferramenta de luta e resistência. Quando comecei a dizer “minha câmera, minha flecha”, era exatamente por isso. Porque hoje a gente não luta só com arco e flecha. A câmera, seja do celular, seja profissional, virou nossa maior ferramenta. É com ela que a gente comunica nossas realidades, nossas vivências, e também luta pelos nossos direitos. A Ancestralidade Visual nasceu com esse propósito: dar visibilidade, alcance e documentar. Ofereço o que eu sei fazer para servir à luta indígena, usando o audiovisual como essa flecha de informação e conhecimento.

M&M: Fale sobre os documentários “Os Sonhos Guiam” e “Minha câmera é minha flecha”. Como surgiram esses projetos?

NT: Esses documentários nasceram durante o curso. Eu era a única bolsista indígena na turma, que era toda formada por pessoas não indígenas, inclusive de uma classe social bem diferente da minha. A Academia Internacional de Cinema é paga, e a mensalidade não é baixa, então eu estava realmente fora da minha realidade ali. Mas

minha turma era muito parceira. No segundo semestre, precisávamos fazer um documentário e a turma pediu para eu sugerir o tema. Eu tinha muita vontade de fazer algo em torno dessa minha afirmação da câmera como flecha. E eu já conhecia o Richard, que é um comunicador do povo Guarani aqui do Jaraguá e que cuida da página Mídia Guarani Mbya. Então, quando meus colegas pediram uma ideia, pensei logo nesses comunicadores do Jaraguá, como o Richard Wera Mirim e o Matheus Wera.

Durante a pesquisa, a gente conversou com eles, e o Matheus nos contou uma história que chamou muito nossa atenção, sobre espiritualidade, sonhos, e a conexão que os povos indígenas têm com os antepassados. Essa história nos comoveu, e pensamos: “e se a gente fizer dois filmes?” Então, “Minha Câmera, Minha Flecha” ficou pra contar a história do Richard, sobre o audiovisual como ferramenta de luta, o que ele já faz na Mídia Guarani, cobrindo atos, eventos e mostrando o que está acontecendo em tempo real com a nossa narrativa. Já “Os Sonhos Guiam” tem uma pegada mais onírica, mais poética, porque acredito que, apesar da luta, nossa vida não é só isso. A gente também sonha. O filme do Matheus é esse respiro, esse lugar de reencontro depois da luta mostrada no filme do Richard. Então, mesmo sendo dois filmes diferentes, acredito que eles se complementam. Um mostra a luta, o outro mostra o sonho. E eu acredito que os sonhos guiam a nossa trajetória.

M&M: Como você avalia a produção audiovisual indígena da atualidade?

NT: Eu avalio de forma muito potente, porque acho que a gente tem muita força. Faço parte da Katahirine, que é a rede audiovisual de mulheres indígenas. “Katahirine” significa constelação. São mulheres de todos os biomas do Brasil, de diversos povos, cada uma na sua vivência, na sua vida, criando coisas coletivas que se mesclam na realidade, na luta. Vejo muita potência nessas mulheres. No início de abril, aconteceu o Acampamento Terra Livre, lá em Brasília, que é a maior mobilização indígena do mundo. E é muito lindo ver tantos parentes com câmera, com celular na mão, registrando, filmando. É muito forte poder acompanhar esse momento a partir do nosso olhar, de quem vivencia isso.

Essas produções feitas por indígenas, que já existem e estão surgindo cada vez mais, têm muita potência. Mas ainda falta oportunidade. O mercado audiovisual, na minha visão, ainda é muito elitista. Valoriza-se muito a produção feita com muito dinheiro, e isso é algo que a gente não tem. Fazemos por conta própria, e mesmo assim vamos ganhando espaço. Mas se tivéssemos mais investimento e oportunidade, tanto na nossa formação como cineastas quanto em recursos para realizar nossas produções, acredito que o cinema indígena poderia crescer ainda mais.

Quero muito ver cada vez mais filmes indígenas sendo realizados. Quero ver mais realizadores trabalhando em produções audiovisuais, não só em produção indígena. Tenho uma parenta chamada Kay Sara, lá do Rio Negro, no Amazonas, que diz: “cinema indígena é o que eu faço, indígena é o que eu sou”. Eu não deixo de ser indígena fazendo cinema. Então pode me chamar não só para produção indígena, mas para qualquer produção. Quero fazer outras coisas também. Ficção, cinema experimental. Acho que, se as pessoas acreditarem e investirem mais, todo mundo só tem a ganhar. Porque a gente já faz produções belíssimas, que já encantam hoje, e que podem conquistar ainda mais pessoas.

M&M: Como as empresas, governos e sociedade podem apoiar a produção audiovisual indígena?

NT: Acredito que as leis de incentivo são muito importantes. Temos a Lei Paulo Gustavo, o ProAC aqui em São Paulo, e tantos outros editais de incentivo à cultura que, hoje em dia, já têm uma cota para pessoas indígenas. Mas acho que, além de abrir esse espaço, de garantir essas cotas, é fundamental também oferecer formação.

A linguagem dos editais e das leis é muito difícil, muito complexa. Às vezes, a gente tem a ideia e a vontade, mas se pergunta: como vou escrever? Como vou entender o que está sendo pedido, se sou autodidata, se não tive formação nisso? Então, é essencial investir nessa capacitação, para que a gente entenda como captar recursos, como fazer uma produção audiovisual, o que é uma produção executiva, uma análise técnica e um orçamento.

Essas formações vão abrindo caminhos pra gente fazer por conta própria. E aí conseguimos montar uma equipe indígena mesmo, porque, muitas vezes, a gente tem a ideia, mas, ao buscar ajuda, acaba formando uma equipe totalmente não indígena. Por isso, acho que o governo precisa investir mais em formação, e também em leis de incentivo e editais que sejam direcionados especificamente para pessoas indígenas. Assim, a gente não precisa competir de forma tão ampla e desigual, e pode ter mais condições de realizar nossas obras com independência, autonomia e do nosso jeito.

M&M: Quais os desafios de fazer cinema indígena?

NT: A gente precisa de formação, capacitação, investimento, e de pessoas que acreditem na gente e ofereçam recursos. Que ajudem a gente a fazer. Falta mais incentivo, mais abertura por parte das grandes empresas e instituições, para que entendam que a gente tem muito a dizer, que a gente sabe falar e fazer.

Esses dias mesmo, fiz uma crítica no X (ex-Twitter). Vi grandes veículos de mídia mandando pessoas não indígenas para cobrir a ATL e registrar o acampamento. E onde estão os comunicadores indígenas? Por que não levar também um comunicador indígena? Acho que dá pra complementar, abrir espaço, dar oportunidade pra gente também estar ali com tudo pago, recebendo pelo nosso trabalho, fazendo a captação e contando a nossa própria história, que tem um olhar diferente.

M&M: Você participou do fundo para criadores de conteúdo do Pinterest. Como foi essa experiência e qual a importância de plataformas apoiarem a produção de conteúdo de criadores indígenas?

NT: Foi muito incrível poder participar. Eles estavam escolhendo criadores de vários nichos, e aí tinha eu, como pessoa indígena, e o Sioduhi, um grande designer indígena do Alto Rio Negro, que eu admiro muito. Também estavam pessoas pretas, pessoas com deficiência, pessoas amarelas. Era um grupo bem diverso, escolhido a dedo por eles. Durante esse período, tivemos várias formações em que a gente aprendeu sobre a linguagem digital, como criar conteúdo e entender o desempenho desse conteúdo. Eram coisas que eu ainda não sabia fazer, e eles me deram essa oportunidade de aprender. E, o melhor: pagaram pelo nosso tempo ali. Porque às vezes a gente está fazendo, mas não está recebendo. Nesse caso, não. Eles investiram mesmo na gente, deram uma bolsa que cobria nosso tempo, nossos gastos, e isso fez toda a diferença.

Acredito que é muito importante que grandes empresas e grandes canais de comunicação, que têm um alcance grande, invistam cada vez mais em criadores. Porque quando pessoas indígenas me veem naquele lugar, elas se identificam. E isso já gera um movimento de consumo daquele canal, daquele conteúdo. Então é benéfico pra todo mundo: você me contrata para produzir e eu trago meus parentes para consumirem seu canal, seu produto, sua marca.

O post A flecha virou câmera: a força indígena pela lente de Natália Tupi apareceu primeiro em Meio e Mensagem - Marketing, Mídia e Comunicação.