A caverna pornográfica de Porto Alegre
O prédio de três andares não tem janelas. Na fachada coberta de pichações, uma porta amarela abre-se para a escada que conduz até o balcão em que Hilton Zilberknop, de 60 anos, atende sua pequena mas fiel clientela. Ele é o proprietário e único funcionário de uma das últimas videolocadoras de Porto Alegre. Há quase quarenta anos em atividade, a Zil Vídeo resistiu às plataformas de streaming que levaram o negócio de aluguel de vídeos à bancarrota. Mais que isso: sobreviveu também à abundância de sexo explícito gratuito oferecido por todo canto da internet. A Zil Vídeo é especializada em pornografia. A casa de filmes adultos – para usar um eufemismo consagrado – fica na Avenida Oswaldo Aranha, via principal do Bom Fim, bairro de tradição judaica e vocação boêmia. Se tivesse uma janela, Zilberknop veria, do outro lado da avenida, o Parque da Redenção, uma das mais belas áreas verdes da capital do Rio Grande do Sul. Seu estabelecimento fica entre dois marcos da cultura alternativa gaúcha: o bar Ocidente, lendário na cena punk de Porto Alegre desde os anos 1980, e a Lancheria do Parque, talvez o mais democrático ponto de encontro da cidade. The post A caverna pornográfica de Porto Alegre first appeared on revista piauí.

O prédio de três andares não tem janelas. Na fachada coberta de pichações, uma porta amarela abre-se para a escada que conduz até o balcão em que Hilton Zilberknop, de 60 anos, atende sua pequena mas fiel clientela. Ele é o proprietário e único funcionário de uma das últimas videolocadoras de Porto Alegre. Há quase quarenta anos em atividade, a Zil Vídeo resistiu às plataformas de streaming que levaram o negócio de aluguel de vídeos à bancarrota. Mais que isso: sobreviveu também à abundância de sexo explícito gratuito oferecido por todo canto da internet. A Zil Vídeo é especializada em pornografia.
A casa de filmes adultos – para usar um eufemismo consagrado – fica na Avenida Oswaldo Aranha, via principal do Bom Fim, bairro de tradição judaica e vocação boêmia. Se tivesse uma janela, Zilberknop veria, do outro lado da avenida, o Parque da Redenção, uma das mais belas áreas verdes da capital do Rio Grande do Sul. Seu estabelecimento fica entre dois marcos da cultura alternativa gaúcha: o bar Ocidente, lendário na cena punk de Porto Alegre desde os anos 1980, e a Lancheria do Parque, talvez o mais democrático ponto de encontro da cidade.
Funcionando desde 1987, essa caverna pornô acumulou um acervo de vastidão obscena: em torno de 30 mil DVDs e 40 mil fitas VHS, nas contas do proprietário, que propagandeia seu negócio como “a maior locadora de filmes adultos da América Latina”. Embora se orgulhe desse título, Zilberknop não tem muito a dizer sobre os filmes guardados em suas estantes.
É mais uma peculiaridade do lugar: o homem que administra sozinho a Zil Vídeo não é um fã do cinema pornô.
“Peraí que vou acender a luz”, avisa Zilberknop enquanto guia a reportagem de piauí por seus domínios. De óculos escuros, ele busca o interruptor. Em outras situações, prefere a penumbra, por causa de sua fotofobia (e também, admite, para economizar na conta de luz).
As lâmpadas fluorescentes tremulam antes de revelar um labirinto de estantes com quase 2 metros de altura, abarrotadas de filmes. Todos os itens em exposição estão cobertos por uma camada de poeira que chega a parecer pegajosa, mas não é espessa o bastante para esconder a pletora de nádegas, vaginas, pênis, peitos femininos siliconados e barrigas masculinas saradas nas capas das fitas e DVDs.
O aluguel de um filme por 24 horas custa 13 reais. Quem leva títulos em maior quantidade ganha mais tempo até a devolução. Também é possível comprar certos títulos do acervo. Zilberknop sabe que alguns clientes adquirem seus filmes para depois revendê-los, com lucro, a colecionadores na internet. Nem por isso cogita aderir ao comércio online, pois tem aversão ao mundo digital. Ele não tem celular e detesta redes sociais (no Facebook, uma página identificada como Zil Vídeo contabiliza só quatro publicações, feitas em 2014). Se dependesse de Zilberknop, a tecnologia audiovisual teria se estagnado nos anos 1980, pois nem a migração do VHS para o DVD lhe agradou muito. “Sou um cara meio lunático, de outro planeta”, define-se, enquanto troca os óculos escuros para óculos de grau, com lentes grandes, ao estilo anos 1970.
Mesmo em seu ocaso, na segunda metade dos anos 2000, as locadoras já usavam computadores para fichar seus filmes. Na sobrevivente do Bom Fim, a organização manteve-se analógica. Afora seções específicas para cada orientação ou preferência sexual, não há indicadores para guiar quem se aventura entre as estantes. O cliente que porventura quiser algum título específico perderá um bom tempo procurando-o. E Zilberknop não é o mais prestativo dos atendentes. “Não gosto de conversar muito com os clientes”, diz. “O pessoal tem que aprender a se virar também.”
No primeiro andar, perto da entrada, ficam os filmes de fetiches, como sadomasoquismo e afins. O segundo andar é dedicado ao pornô gay, mas parece não receber visitas humanas com frequência. Subindo as escadas e percorrendo os corredores cheios de fotos de homens musculosos, dá para sentir na pele as teias de aranha se rompendo. O subsolo guarda a pornografia hétero cisgênero mais convencional. Zilberknop desaconselha a visita: “Está meio empoeirado.”
Os fregueses da locadora hoje não chegam a uma dezena. Zilberknop diz que a maioria são homens mais velhos. Nas horas que a reportagem passou no lugar, dois amigos de Zilberknop apareceram para conversar, mas ninguém veio retirar vídeos. “A média é baixa hoje em dia. Às vezes vêm meia dúzia, às vezes vêm três. Ontem vieram um ou dois”, diz o proprietário. “Às vezes tem gente que quer ser cliente. Mas querem DVD que não é pornô.” Existem poucos desse gênero na Zil Vídeo, largados em pequenas pilhas.
Hilton Zilberknop nasceu 260 km ao Sul de Porto Alegre, na cidade histórica de Pelotas. Mudou-se para a capital do estado quando tinha 3 anos. Para todos os efeitos, se considera mais porto-alegrense do que pelotense.
Sua família é judaica – e naturalmente foi morar no Bom Fim, onde a comunidade está enraizada desde os anos 1920. Os pais de Hilton compraram imóveis no bairro, entre eles o prédio que viria a ser a Zil Vídeo. Zilberknop não gosta de falar das propriedades da família. “Isso é com o meu contador”, desconversa.
Batizada com uma abreviação do sobrenome Zilberknop, a Zil Vídeo começou como um empreendimento familiar: uma sociedade entre Hilton e Celso, seu irmão mais velho. Foi Celso quem teve a ideia de se arriscar no aluguel de filmes. No entanto, ele deixou a locadora nas mãos do caçula meses depois da inauguração. Por conta própria, decidiu abrir um negócio correlato, mas não tão sujeito à obsolescência tecnológica: uma sex shop.
Em seus tempos áureos, a Zil Vídeo mantinha um quadro de cinco funcionários. Zilberknop costumava viajar para São Paulo para comprar lançamentos diretamente nas produtoras de filmes adultos. A locadora gaúcha até recebeu a visita de algumas celebridades do cinema pornô, como o controverso diretor francês Pierre Woodman – acusado de coagir suas atrizes a fazer sexo violento na série Casting X – e a atriz tcheca Silvia Saint, estrela de produções como O experimento em Urano (no original, em inglês, The uranus experiment comporta um trocadilho malicioso).
A resistência da Zil Vídeo ao cerco da internet conferiu à locadora um status quase mitológico em Porto Alegre. Ao longo das décadas, ela foi pauta da imprensa local. Penduradas em uma viga de metal próxima ao balcão, reportagens de jornal exibem fotos de Zilberknop um pouco mais jovem e menos calvo, com os mesmos óculos de aro de metal que usa ainda hoje.
Frequentadores do Bom Fim costumam falar da locadora num tom ao mesmo tempo jocoso e carinhoso, como se o estabelecimento fosse uma prova viva da singularidade do bairro. “Uma época, nos anos 1990 e 2000, o dono levava a mãe para almoçar no Ocidente”, conta Julia Barth, de 42 anos, artista, produtora cultural e vocalista da banda Replicantes. “Sempre achei pitoresco o cara com o maior acervo pornô da cidade ser todo filhinho de mamãe.” Barth diz que, quando jovem, Zilberknop era “super rockabilly” – referência a um tipo de rock com pegada de Elvis Presley e que faz parte da tradição do Bom Fim. Ela só entrou na Zil Vídeo uma vez. “Uma amiga me levou para olhar um filme de uma conhecida nossa que era punk da [avenida] Oswaldo Aranha, se mudou para São Paulo e virou atriz pornô”, lembra. “A loja é um horror, parece que ela é toda remendada, mas sempre foi muito tranquila.”
O sócio único da Zil Vídeo se considera um cinéfilo. Gosta do cinema brasileiro – em particular, das produções da Boca do Lixo, área do Centro de São Paulo que dos anos 1960 a 1980 abrigou o inovador polo cinematográfico do qual saíram clássicos como O Bandido da Luz Vermelha (1968), além de muitas pornochanchadas (e, no seu declínio, filmes de sexo explícito). Também admira os filmes do italiano Giuseppe Tornatore, conhecido por Cinema Paradiso (1988), uma nostálgica celebração do cinema.
Zilberknop só não é um entusiasta do gênero em que se especializou profissionalmente. Em 1987, a ideia de montar uma locadora pornô teve razões de mercado. Era um nicho pouco explorado pelas locadoras convencionais, que em geral reservavam só um canto meio escondido para produções do gênero. A diversidade do acervo – hétero, gay, fetichista, sadomasô – visava atender os mais variados apreciadores de o sexo explícito, que há tempos têm vasto material grátis na internet.
A Zil Vídeo mantém-se ativa sobretudo como um ato de resistência de seu proprietário. Ele sabe que o movimento vem caindo há décadas e não vai se recuperar. Ainda assim, continua comprando títulos novos. De uma pilha de DVDs em cima do balcão na entrada, Zilberknop pega uma caixa a esmo para mostrar o ano de produção: 2021. Ele explica que não faz essas aquisições como colecionador: é tudo para manter o “capital de giro”. “Isso aqui é comércio”, diz.
Embora receba poucos clientes, a locadora mantém as portas abertas em horários regulares. Ela raramente esteve fechada – o período mais recente foi no ano passado, quando Zilberknop passou algumas semanas no interior do estado cuidando do pai, que estava em seus últimos dias de vida.
O orgulho maior do proprietário é a dimensão de seu acervo. Mas as prateleiras abarrotadas de DVDs e fitas de vídeo com capas desbotadas não são exatamente um estímulo erótico para novos frequentadores. Anos atrás, Zilberknop cogitou construir cabines para que os clientes pudessem assistir às produções ali mesmo, mas desistiu porque não quer saber de reformas. “O pessoal ia começar a querer beber. Isso dá briga e eu ia ter que botar segurança. Aí não quis”, explica.
O descuido estende-se à fachada, quase tão fantasmagórica quanto as imagens dos atores pornôs apagando-se nas prateleiras do lado de dentro. Zilberknop teve de tirar a placa com o nome “Zil Vídeo” por causa de leis municipais contra a poluição visual. E então deixou as pichações tomarem conta do exterior da loja. “Parece uma casa mal assombrada”, reconhece.
Solteiro e sem filhos, Zilberknop não lamenta a decadência das locadoras. Leva a vida livremente, em seus próprios termos, e recebe amigos e parentes para conversar durante o expediente. Aliás, um primo seu acompanhou toda a entrevista à piauí, sentado atrás do balcão como se fosse funcionário da casa. Manteve-se em silêncio quase o tempo todo, mas, a certa altura, resolveu dizer à repórter que ela estava na maior locadora de filmes adultos da América Latina. “Ela sabe. Veio aqui para isso”, cortou Zilberknop.
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