Séries: “O Eternauta” é digno do orgulho da América Latina inteira (por vários motivos)
“O Eternauta” é um impressionante feito na história do audiovisual latino-americano ao acertar no âmago de um povo que fez da luta pela própria vida e cultura sua principal missão.

texto de Davi Caro
É bastante normal ver a palavra “inadaptável” sendo jogada de um lado para o outro quando o assunto é a transposição de determinados trabalhos para outras mídias. Alan Moore é campeão em disputar o valor que possíveis adaptações de várias das HQs que escreveu (às vezes com razão) ao mesmo tempo em que muitos viram com ceticismo o desenvolvimento de uma série de TV baseada em “Sandman” – que acabou chegando à Netflix com êxito inegável. Também vale dizer que Héctor Germán Oesterheld (1919 – 1977) não chegou a viver tempo suficiente para sequer considerar seriamente a possibilidade de ver uma obra sua adaptada em outra mídia, à exceção de uma (nunca produzida) versão animada já nos anos de 1960; é justo, no entanto, imaginar que ele poderia ter suas dúvidas sobre uma possível reimaginação de “O Eternauta” (publicado originalmente entre 1957 e 1959 na revista argentina “Hora Cero” e reunida em um volume que ganhou edição caprichada no Brasil em 2024), tendo em vista as sutis implicações e o delicado subtexto que sua combativa e reflexiva fábula de ficção científica trazia. E, verdade seja dita, seria difícil entender qualquer reticência que o autor – ou o artista Francisco Solano Lopez (1928 – 2011) – pudesse ter hipoteticamente tido.
Imaginar que ambos estariam mais do que satisfeitos com a nova série que chegou, no final de Abril, à Netflix é, então, apenas um dos muitos triunfos que “O Eternauta” conquista para si. Dirigida por Bruno Stagnaro, a temporada estreante de seis episódios consegue o impensável e desenvolve, trazendo a tensa narrativa de Oesterheld para os dias atuais e fazendo justas (e surpreendentes) adaptações da trama, uma história que cobra (re)conhecimento de todo o continente no qual foi concebida. Mais do que simplesmente um conto de invasão extraterrestre, “O Eternauta” fala sobre a essência humana, conforme exemplificada, para o bem e para o mal, por personagens que ganham nova vida graças a um elenco brilhantemente escolhido, capaz de compreender e transmitir toda a seriedade e delicadeza de um dos mais belos trabalhos jamais feitos na Nona Arte latino-americana – e, por que não, mundial.
Estabelecer a história contada na série original está longe de ser a única modificação realizada no enredo, ainda que todas são bem sucedidas em servir ao desenvolvimento do núcleo principal de personagens. Alguns elementos são mantidos: reunidos em uma noite de Buenos Aires para jogar costumeiras partidas de truco, os amigos Juan Salvo (Ricardo Darín), Alfredo Favalli, mais conhecido como “Tano” (César Troncoso), Ruso Polsky (Claudio Martínez Bel) e Lucas Herbert (Marcelo Subiotto) – acrescidos de um inesperado Omar (Ariel Staltari), cunhado de Polsky – testemunham o momento em que a eletricidade e equipamentos no geral deixam de funcionar. Da casa de Favalli, onde este reside com a esposa, Ana (Andrea Pietra), o grupo não tarda a perceber uma queda brusca na temperatura, aliada ao aparecimento de uma estranha neve que cai do céu, e capaz de matar qualquer ser vivo que toque. Reféns de uma situação inesperada e chocante, os personagens passam a lidar com os dilemas inerentes a uma situação apocalíptica, que se aprofunda com o refúgio da entregadora venezuelana Ingrid (Orianna Cardenas). Temendo pela segurança da filha, Clara (Mora Fisz), e da ex-esposa, Elena (Carla Peterson), ao mesmo tempo em que o grupo no qual se encontra começa a traçar planos de ação para sobreviver, Juan veste um traje isolante e se aventura pelos agora estéreis bairros da capital argentina, em busca tanto de suas familiares quanto de alternativas para manter a si mesmo e a seus companheiros vivos – e, no processo, começa a desvendar alguns dos mistérios por trás dos intrigantes e mortais eventos que se anunciam a seu redor.
Conhecedores da obra original de Oesterheld com certeza são capazes de perceber, por meio do resumo acima, algumas das várias diferenças que a série apresenta junto ao material que a inspirou. Mesmo a idade de Salvo, estimada em cerca de 40 anos na HQ, é reestabelecida: na altura de suas seis décadas, o personagem de Ricardo Darín possui um elemento narrativo novo que, se vê em determinadas passagens, faz toda a diferença não apenas para o desenvolvimento do roteiro, como também faz sentido dentro do sutil verniz de comentário político inseparável do enredo que se lê nas tiras. E tais mudanças só fazem adicionar à construção da dinâmica entre o núcleo central dos episódios, com Darín incorporando Juan com dedicação e empenho ímpar, conforme flashbacks de traumáticas experiências na Guerra das Malvinas se intercalam com perturbadores vislumbres do que pode ser um futuro sombrio.
Não que o restante do elenco caia de lado: César Troncoso é reluzente em sua performance como Favalli, na qual seu ceticismo e racionalidade crônicos dão lugar, ocasionalmente, aos momentos de pânico esperados de um engenheiro que se depara com uma enigmática invasão extraterrestre. A princípio deslocado, o personagem de Omar – não presente no roteiro de Oesterheld – acaba sendo uma das bem-vindas adições à narrativa, com uma ótima interpretação de Ariel Saltari. O mesmo se pode dizer da Ana vivida por Andrea Pietra, que serve como uma âncora que estabiliza muito da dramaticidade vista na trama. E Carla Peterson trabalha muito bem como Elena, em um papel, em grande parte, muito diferente de sua contraparte das HQs, ajudando a contar uma história pregressa ao início do primeiro episódio com delicadeza e naturalidade.
Outro elemento impossível de esquecer é o trabalho com efeitos especiais visto aqui: transpondo alguns dos mais fantasiosos elementos do trabalho gráfico de Solano López para o audiovisual, as tomadas mais ricas em animações computadorizadas não destoam nem um pouco, e estas (pareadas com a excelente recriação de algumas das paisagens mais conhecidas de Buenos Aires – em estados, claro, muito diferentes da exuberância que a cidade exala) são instrumentais no excelente trabalho de imersão que permeia todos os seis episódios. Outra grande peça no sucesso de “O Eternauta” está na sonorização: Bruno Stagnaro emprega com maestria a trilha original composta por Federico Jusid, junto com interjeições de canções que ajudam a contar a história não apenas da trama, como também do majestoso país no qual esta se passa. De Mercedes Sosa e Carlos Gardel até El Mató a un Policía Motorizado, passando por Soda Stereo, Pescado Rabioso e El Reloj (bem como a singela e potente interpolação de um clássico do grupo Manal em um dos episódios derradeiros), a música é elemental em distribuir, sobre um pálido tabuleiro, as peças de uma trama cheia de reviravoltas e desolação, mas também de triunfo e da determinação que habita o âmago de seres humanos dispostos a defender seu lar de obscuros antagonistas, sobre quem reside o grande mistério de uma história ainda sem final.
Sim, porque a primeira temporada de “O Eternauta” narra apenas os acontecimentos da primeira parte da HQ, com muitos dos momentos de maior simbolismo reservados para uma futura segunda leva de episódios, já confirmada pela Netflix frente ao inegável sucesso junto a público e crítica. Em um momento em que grandes histórias voltam a habitar o imaginário popular graças ao sucesso de “The Last Of Us, Parte II”, surge um trabalho primoroso, como este, capaz de cativar tanto grandes aficionados de ficção científica quanto espectadores mais casuais – mas sobretudo aqueles que habitam neste às vezes contraditório, e ocasionalmente preocupante, mas sempre riquíssimo e estonteante continente, onde resiliência e instinto de sobrevivência caminham lado a lado rumo à luta (e ao triunfo) coletivo. “A história reflete, assim, ainda que sem intenção prévia, meu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, nunca o herói solitário”, escreveu Oesterheld em sua célebre introdução para sua obra mais celebrada. Tanto Héctor quanto Solano López podem não ter vivido para ver tais ideias alcançando novas, e apaixonadas, audiências. Ainda assim, em algum lugar, ambos têm muito do que se orgulhar. “O Eternauta” é um impressionante feito na história do audiovisual latino-americano, acertando no âmago de um povo que, em sua coletividade, fez da luta pela própria vida e cultura sua principal missão.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.