Risco, exigência… e 'fita'. A vida dos 'salvadores silenciosos' da I Liga
Em entrevista ao Desporto ao Minuto, João Saraiva Alexandre revelou os bastidores médicos da preparação de uma temporada de um clube profissional da I Liga.

O futebol nacional e internacional tem sido marcado por cada vez mais lesões prolongadas, sendo que o público geral apenas tem acesso às repetições dos lances de como o jogador se lesiona e alguns momentos partilhados pelos atletas ao longo da recuperação. Com a evolução progressiva das tecnologias médicas no desporto, muitos se questionam como os clubes se preparam para prevenir estas situações.
O Desporto ao Minuto falou com João Alexandre para conhecer os bastidores de uma temporada da equipa médica de um clube profissional da I Liga e os pormenores da sua carreira enquanto membro do departamento médico do Estrela da Amadora.
O João é medico em vários hospitais. Como é que surgiu esta oportunidade de ser médico do Estrela da Amadora?
Comecei há cerca de três anos, no Estrela. Neste momento, estávamos na II Liga e acabei por aceitar, porque é um excelente desafio profissional e pessoal, e como sempre fui mais ligado a olhar para a medicina de alta performance, aceitámos esta proposta.
Contacto com o futebol não é nada de novo. Jogou vários anos no Real Sport Clube, certo?
Sim, joguei no Real Massamá durante vários anos na formação, sempre gostei muito de futebol, sempre fui um seguidor aficionado e conseguindo juntar a medicina com algo de que tanto gosto é a junção de dois mundos perfeitos. Estive lá durante seis anos e, estando em medicina, uma pessoa acaba por ter de estudar e seguir esse caminho.
Acho que acabo por ser mais útil para ajudar em termos de saúde do que no relvado a jogar à bola
Em termos de qualidade, colocava-se no plantel do Estrela?
Não, não. Claramente seria um patamar bastante inferior [risos]. Até em termos físicos, acho que acabo por ser mais útil para ajudar em termos de saúde do que no relvado a jogar à bola.
Os jogadores focam-se na componente física, os treinadores na tática… Como é a 'pré-época' de um médico?
Na pré-época, temos sempre as novas contratações, temos de dar o aval, perceber como os jogadores chegam, fazer os testes médicos, análises e exames de imagem, e vemos as condições físicas de cada um. Vemos a questão da flexibilidade, da força, se há simetria ou não, até porque, depois de uma paragem, há jogadores melhor preparados do que outros, e isso depende já mais dos jogadores do que de nós. Damos algumas propostas de treino que devem fazer antes de chegar ao clube para estarem em melhores condições, fazemos uma gestão de cargas e, nessa fase, é mais complicado. Há lesões que são mais típicas da pré-época do que no decorrer da temporada, e temos de estar atentos a isso e ir gerindo, sendo que é mais fácil gerir nessa altura, porque não há competição. Com competição, a pressão já é outra. O nosso trabalho passa por dar as condições aos jogadores para que estes tenham o menor número de lesões na época. Claro que há certas lesões que não conseguimos impedir, mas há outras que podemos prevenir ao máximo.
Por vezes, os jogadores não passam nos exames médicos… Quais são as principais razões para isto acontecer?
Há variáveis médicas, no que diz respeito a fatores de risco para determinadas lesões, inclusive, mortes súbitas, arritmias ou outras situações que possam colocar em risco a vida do atleta. A exigência no Estrela é grande, estamos a falar de um clube de I Liga e acabamos por realizar mais exames do que os obrigatórios pela FIFA para confirmarmos essas situações. Depois, também há a avaliação física, onde vemos os relatórios de lesões passadas que os jogadores tenham tido, nomeadamente, as patologias do joelhos, tornozelos… e os testes acabam por revelar se vamos ou não conseguir chegar a uma condição física mínima para o clube, e essas exigências podem variar consoante o clube. Em termos de risco de vida, se existir, não passamos o jogador. Em termos físicos, fazemos o relatório de riscos para a equipa técnica, para eles perceberem se faz sentido ou não investir nesse atleta. Ou seja, se vier um jogador muito bom, mesmo que jogue apenas dez jogos, se for benéfico para o clube, podemos adquiri-lo na mesma.
Um jogador motivado vai recuperar muito mais depressa, está comprovado.
Qual o papel da equipa médica na motivação dos jogadores na recuperação de lesões, principalmente, nas mais prolongadas?
Os jogadores querem sempre jogar, querem sempre ir para dentro de campo, mas há certas lesões onde não é possível e fazem o jogador questionar-se quanto ao motivo de só acontecer com ele, pelo que o papel dos médicos, dos fisioterapeutas, nutricionistas é, primeiro, motivar, porque um jogador motivado vai recuperar muito mais depressa, está comprovado, e, depois, orientar o atleta por objetivos para 'alimentar' essa mesma motivação. No Estrela, somos uma família, os jogadores, a estrutura, e acaba por ser muito bom quando vemos os jogadores regressarem aos relvados no nível que estavam ou mesmo com melhores condições. O departamento médico acaba por não ter muito reconhecimento do público, só quando as coisas correm mal, quando há uma lesão grave, uma morte súbita é que as pessoas se lembram e dizem "Ainda bem que eles estão ali". Quando os jogadores voltam e corre bem, não há muito reconhecimento.
Em certas ocasiões, jogadores vão a jogo mesmo com lesões que não foram totalmente recuperadas… Como é que é feita esta gestão?
Depende sempre das lesões e do jogo em questão. Há situações em que é mesmo impossível o atleta entrar em campo. Se for um jogo importante ou uma decisão importante, todos os departamentos estão em comunicação constante para avaliar essas questões. Por vezes, até dizemos que certo jogador pode jogar 30 minutos e depois, com as circunstâncias do jogo, acaba por jogar 45. Isto, depois, acaba por ser gerido pela equipa técnica. Nós damos um conselho e informamos sobre o risco de agravamento da lesão inicial, mas depois, em jogos decisivos, acontece terem de ir para o campo e fazer mais minutos do que era suposto. A última decisão é da equipa técnica. O departamento médico só decide quando um jogador não pode mesmo ir a jogo.
Já algum jogador pediu assistência e quando lá chegou era apenas para descansarem um pouco?
Nós estamos lá pelo bem estar dos atletas e também já conhecemos os jogadores e as tipologias de lesão e acabamos por perceber se é algo grave ou não. No entanto, com o calor do jogo e o momento da partida, às vezes pensamos que não é nada e depois acaba por ser uma lesão grave. Mas há jogadores que acabam por fazer mais 'fita' do que outros, com a sua experiência… Obviamente que queremos defender os interesses do nosso clube, mas nunca de forma escandalosa. Queremos vencer com o futebol jogado, que é a nossa paixão em comum.
João Alexandre a assistir Léo Jabá, em jogo da temporada 2023/24© Reprodução/Facebook João Alexandre
Quem é o mais 'fiteiro' do plantel?
Temos vários [risos], aqueles com mais experiência acabam por ser os mais 'fiteiros'. Os miúdos nem sempre se queixam, e, por vezes, dizemos que eles têm mesmo de se queixar mais, porque acaba por ser um sinal da gravidade das lesões. Não sei se devo dizer nomes, mas acho que é do conhecimento público. Normalmente, são os jogadores que têm uma carreira mais consolidada. Temos muitos que já passaram por clubes como Benfica, Sporting… clubes de outra dimensão. Acho que está à vista de todos os adeptos.
Desde que está no Estrela, já levou algum cartão?
Sim [risos], quando estamos em campo a paixão acaba por estar presente, aquela adrenalina… E, por vezes, temos impulsos de querer ajudar ao máximo. Uma vez estávamos num jogo frente ao Farense, na altura, ambos na II Liga, a disputar a subida de divisão e é uma rivalidade histórica, devido à final da Taça de Portugal, em 1990, que o Estrela venceu. Nesse jogo, em Faro, estávamos a ganhar e eu não me lembro de entrar tantas vezes em campo. Houve um choque de cabeças e o árbitro tem de nos dar autorização antes de entrarmos em campo, só que, dessa vez, entrei sem o consentimento do árbitro e acabei por ser expulso [risos]. Eu ainda pensei se podia ou não ser expulso, mas a verdade é que assisti o jogador e depois tive de sair do banco.
Enquanto médico do Estrela já presenciou uma fatura exposta durante um jogo© Reprodução/Facebook João Alexandre
Vários nomes em dúvida para o jogo frente ao Sporting, entre eles o Nilton Varela e o Amine Oudrhiri. Algum deles pode ser chamado a jogo?
São situações diferentes, a recuperação está a ser feita e estão ambos a recuperar muito bem, são os dois importantes na estrutura do plantel. Mais perto do jogo ainda faremos alguns testes, mas o que podemos avançar é que um deles está mesmo de fora, claramente, o outro ainda estamos a ver se pode fazer alguns minutos ou não.
Prognósticos para o Estrela da Amadora-Sporting?
Os prognósticos têm sempre de ser positivos, numa fase tão importante como esta, em que todos os pontos valem, claro que do outro lado está uma equipa com outros objetivos, mas eu acho que temos argumentos para fazer um bom jogo, para ser competitivos. Acho que temos de manter o nosso modelo de jogo, as nossas ideias, temos jogadores experientes e quem está no Estrela, por toda a história que tem, temos sempre de pensar na vitória, seja qual for o adversário. Sabemos que vai ser difícil e que temos pressão do nosso lado na luta pela manutenção, mas o Sporting também tem a sua pressão na luta pelo título. Todos os pontos contam e precisamos dos nossos adeptos, de encher o estádio e puxar pela equipa e, assim, as coisas podem correr bem para nós.
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