Porque é que a ciência não consegue responder se a tecnologia é má para a saúde?

Talvez o maior problema seja a falta de conclusões que permitam responder, com certeza, às perguntas que a sociedade está a fazer sobre os telemóveis, as redes e a inteligência artificial (IA).

Abr 20, 2025 - 18:47
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Porque é que a ciência não consegue responder se a tecnologia é má para a saúde?
chip tecnologia
Os autores de um artigo científico explicam como acelerar os processos científicos para esclarecer as consequências negativas da vida digital. “Precisamos de ser transparentes quando não há muitas provas”, assume ao El País Amy Orben, psicóloga e líder de um grupo de saúde mental e tecnologias digitais na Universidade de Cambridge.

Talvez o maior problema que afeta a ciência em relação às novas tecnologias seja a falta de conclusões que nos permitam responder com certeza às perguntas que a sociedade está a fazer sobre os telemóveis, as redes e a inteligência artificial (IA): “É difícil encarar a possibilidade de que as provas [desta relação] possam ser exageradas, mesmo que isso seja feito na crença de que isso manterá as crianças mais seguras”, acrescenta Orben.
Não existe uma solução fácil. Os cidadãos e os políticos têm frequentemente de recorrer a preconceitos na ausência de respostas claras sobre a ligação entre os telemóveis e a saúde mental. Por vezes, as autoridades podem acabar por regular desnecessariamente ou, por outro lado, deixar sem regulamentação um enorme problema que afeta milhões de pessoas.
“Queremos incentivar os cientistas a ligarem-se às pessoas e a falarem claramente, incluindo o que não sabemos”, diz J. Nathan Matias, diretor de um laboratório de cidadania e tecnologia na Universidade de Cornell. Orben e Matias estão a publicar um artigo na revista Science para iniciar o debate sobre a velocidade da tecnologia atual e propor medidas para acelerar a ciência.
Em conversa ao jornal espanhol, esclarecem os principais pontos. Orben prevê que daqui a cinco anos sejam questionados sobre a importância das conversas entre adolescentes e dos chatbots de IA: “Há meses que digo que precisamos de começar a recolher dados a longo prazo sobre a forma como as crianças utilizam as aplicações de chat de IA”, diz.  “A ciência de rotina é incrivelmente poderosa, cuidadosa e precisa, e não estamos a dizer que não deva ser feita, mas sim que precisa de ser acelerada em certos aspetos, porque agora todo o sistema à nossa volta está a acelerar”, acrescenta Orben.

As grandes empresas de tecnologia não vão ajudar. A sua prioridade é obviamente outra: ganhar dinheiro. As propostas de Orben e Matias são dirigidas à comunidade científica, e não às empresas: “Historicamente, as empresas tendem a não querer saber certas coisas” sobre os efeitos dos seus produtos, descreve Matias. Preocupa-nos que o mesmo possa acontecer com as tecnologias digitais. Se as empresas temem as violações, os seus dirigentes, compreensivelmente, questionam-se: não será melhor não ter qualquer registo de que esses danos são reais? Queremos mudar estes incentivos.

Matias e Orben esperam que tudo isto não soe apenas a “a ciência é demasiado lenta” e que as provas devam ser desconsideradas. Esperam que, numa era em que as grandes empresas tecnológicas têm toda a informação e podem testar novos produtos sem parar, a ciência precisa de se adaptar. As empresas tecnológicas aceleram o desenvolvimento dos seus produtos porque estão sempre a testar. Fazem testes A/B a toda a hora, mudam as coisas, observam o que acontece e obtêm insights rapidamente. Não estamos a dizer: ‘Vamos reduzir o padrão de prova para dizer que algo é prejudicial’. O que estamos a dizer é que, mesmo que as provas não sejam perfeitas, devemos começar a testar mais cedo para ver se certas mudanças ajudam”, diz Orben.

As medidas específicas propostas por Orben e Matias são quatro:

1. Melhores dados sobre as consequências
O artigo pede que as tecnologias digitais sejam incluídas nos registos públicos quando um funcionário regista possíveis causas de morte ou ferimentos. “A informação sobre tecnologia poderia começar a ser incluída em sistemas como registos de mortalidade, relatórios de acidentes de trabalho ou relatórios policiais sobre violência doméstica, tal como já é feito com os acidentes de viação”, escrevem Matias e Orben.

2. Ajuste a escala de perigo
O artigo inclui esta citação sobre como gerir o nível de perigo: “As perdas empresariais são mais fáceis de reverter do que as vidas”. As grandes empresas tecnológicas estão a aproveitar a falta de provas claras para dizer que não há necessidade de pânico. O medo deles é perder dinheiro. Talvez este equilíbrio entre benefícios e saúde precise de ser reconsiderado, dizem os cientistas.

3.Trabalho em paralelo
As experiências sociais geralmente levam anos de preparação, execução e análise. Orben e Matias propõem em alguns casos lançar várias ações em paralelo, ao mesmo tempo. “De certa forma, trata-se de fazer as coisas mais depressa, mas isso não significa saltar certas etapas. Temos de acelerar, mas de forma definida e cuidadosa”, diz Orben.

4. Uma lista de problemas
Durante anos, houve preocupação com o impacto ambiental e na saúde de vários tipos de produtos químicos utilizados na limpeza, pintura e como pesticidas. Estes produtos químicos eternos são difíceis de decompor, causam cancro e foram sintetizados pela primeira vez na década de 1930. Só na década de 2000 é que os cientistas finalmente reuniram provas definitivas, e houve uma revolução nos produtos químicos verdes, que defende que, em vez de esperar para ver se algo faz mal, deve ser dada prioridade ao desenvolvimento de alternativas mais seguras: “Estamos a encorajar uma abordagem semelhante com a tecnologia digital”, diz Matias.

“Por vezes, não têm a certeza se um composto específico causa cancro ou algum outro problema, mas têm uma lista de quanto é utilizado, que incidentes apareceram nos registos de mortalidade e, depois, os empresários podem analisar essa lista e desenvolver produtos novos e mais seguros. Há muito a ganhar com um processo semelhante baseado em listas: ‘Aqui estão os designs que preocupam as pessoas’, mesmo enquanto tentamos definir as provas, podemos começar a encontrar melhores alternativas. É algo que requer negociação e uma entidade responsável por manter essa lista. Mas é uma solução baseada na ciência, no mercado e em regulamentos que, noutras áreas, aceleraram a criação de produtos mais seguros”, acrescenta Matias.

A comparação entre as aplicações e a indústria do tabaco não é muito precisa. “O tabaco é um composto estável; não há muitas formas de o tornar mais seguro. Fala-se muito em comparar o tabaco às redes sociais, mas é diferente porque, com as redes sociais, poderíamos criar algo muito mais seguro”, diz Orben.

Matias insiste que os produtos químicos são um modelo melhor: “Os produtos químicos têm muitas utilizações valiosas. E, ao mesmo tempo, existem compostos que são tóxicos. Portanto, o desafio para a sociedade é melhorar constantemente, mas também saber como identificar coisas que são tão más que simplesmente precisam de ser proibidas”.