Francisco, a igreja e os homossexuais
Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, morreu na segunda-feira (21), aos 88 anos, após semanas de tratamento de uma pneumonia nos dois pulmões. Em seu pontificado, ampliou a atenção a ações de combate à pobreza e defendeu a união civil entre homossexuais, mas encampou também posições conservadoras. A forma ambígua como Francisco lidou com a homossexualidade na Igreja foi tema de uma reportagem de Andrew Sullivan, publicada pela piauí em março de 2019. Abaixo, um trecho da reportagem, que pode ser lida na íntegra aqui. Tradução de Sergio Tellaroli The post Francisco, a igreja e os homossexuais first appeared on revista piauí.

Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, morreu na segunda-feira (21), aos 88 anos, após semanas de tratamento de uma pneumonia nos dois pulmões. Em seu pontificado, ampliou a atenção a ações de combate à pobreza e defendeu a união civil entre homossexuais, mas encampou também posições conservadoras. A forma ambígua como Francisco lidou com a homossexualidade na Igreja foi tema de uma reportagem de Andrew Sullivan, publicada pela piauí em março de 2019. Abaixo, um trecho da reportagem, que pode ser lida na íntegra aqui.
Tradução de Sergio Tellaroli
Não sabemos quantos padres da Igreja Católica são gays, pois não existem números confiáveis. O Vaticano já realizou muitos estudos a respeito do clero, mas nunca sobre isso. Nos Estados Unidos, no entanto, onde há 37 mil padres, todas as pesquisas independentes dizem que pelo menos 15% dos sacerdotes são gays. Há estimativas muito maiores, sobretudo quando se considera não só as paróquias, mas também as ordens religiosas.
Esse fato paira no ar como um paradoxo gigante, insustentável. Uma Igreja que desde 2005 proíbe padres “com tendências homossexuais profundas” e ensina em sua doutrina oficial que os gays têm uma propensão “objetivamente desordenada” e tendem para um “comportamento intrinsecamente mal do ponto de vista moral” é, na verdade, uma Igreja constituída – como pouquíssimas outras instituições – de homossexuais.
A enorme dissonância cognitiva que isso requer está se tornando cada vez mais difícil de sustentar. Nas últimas três décadas, com o malogro das atitudes de acobertamento do segredo – seja na vida pública ou na pessoal –, vem se tornando mais difícil esconder, ignorar ou negar a homossexualidade entre os padres católicos. Essa mudança cultural e moral não apenas transformou a consciência da maioria dos católicos norte-americanos e dos padres homossexuais (muitos dos quais estão à beira de abandonar o sacerdócio), como também rompeu o silêncio que por tanto tempo encobriu o assunto.
Em julho de 2013, quando lhe perguntaram sobre um padre ser gay, o papa Francisco fez uma declaração – “Quem sou eu para julgar?” – que foi um divisor de águas. “Uma pessoa uma vez me fez uma pergunta provocativa, quis saber se eu aprovava a homossexualidade”, ele disse. “Retruquei com outra questão: ‘Quando Deus olha para um gay, ele endossa a existência dessa pessoa com amor ou a rejeita e condena?’ Temos sempre de considerar a pessoa em si. E aí adentramos o mistério do ser humano.”
No último esboço do documento para o Sínodo sobre a Família de 2014, Francisco incluiu uma menção explícita aos “dons e qualidades” dos homossexuais, perguntando: “Seremos capazes de acolher [essas pessoas]?” Sentimentos semelhantes ganharam 62% dos votos dos bispos presentes – pouco menos que o necessário para aprovar o documento, mas, ainda assim, prova de uma considerável mudança de tom nos ensinamentos oficiais da Igreja.
E também provocaram um quase pânico na direita católica. Alarmados com a possibilidade de pessoas divorciadas e daquelas que se casaram de novo virem a ser acolhidas como os gays, tradicionalistas lançaram contra o novo papado uma campanha feroz – focada numa suposta “máfia púrpura”, como alguns a chamaram, que estaria à testa da Igreja – e adentraram novo terreno ao vincular isso às horripilantes revelações de abuso sexual que vieram à tona em 2002. De forma cada vez mais direta, postulavam que na raiz do escândalo não estavam abuso de poder, pedofilia, clericalismo ou os efeitos psicológicos deformadores do celibato e da homofobia institucional, e sim a própria homossexualidade.
“Há uma cultura homossexual não apenas no clero, mas no interior da alta hierarquia também, e ela precisa ser purificada desde a raiz”, declarou o cardeal norte-americano Raymond Burke em agosto de 2018. Robert Morlino, bispo de Wisconsin, concordou. “Chegou a hora de admitir que existe uma subcultura homossexual dentro da hierarquia da Igreja Católica que está provocando grande devastação”, ele escreveu. “Se me permitem, o que a Igreja precisa agora é de mais ódio” ao comportamento homossexual, “um pecado tão grave que clama aos céus por vingança.” Michael Hichborn, chefe do ultraconservador Lepanto Institute, clamou pela “expulsão rigorosa e completa de todos os clérigos homossexuais […] Vai ser difícil de fazer, e é provável que resulte numa carência muito séria de padres, mas com certeza vale o esforço”.
Em meados de 2018, a indecorosa queda de Theodore McCarrick, um dos mais poderosos cardeais norte-americanos de seu tempo, forneceu a essa facção uma cause célèbre, provocando um debate vigoroso. Descobriu-se que McCarrick tinha abusado de pelo menos duas crianças e, mais tarde, assediara impunemente várias gerações de seminaristas adultos. Ao que parecia, ali estava, no topo da Igreja, um pedófilo e homossexual praticante de abusos, alguém que se sabia ser ativo sexualmente com seminaristas, mas que, protegido pelos pares, havia sido tolerado ao longo de décadas por muitos na alta hierarquia, inclusive pelos três últimos papas.
McCarrick abriu uma brecha para a direita. Novas organizações midiáticas na internet – lideradas por sites ao estilo do ultradireitista Breitbart News, como a LifeSite News e a Church Militant – agora se atiram rotineiramente sobre todo e qualquer incidente envolvendo padres gays e desfrutam de audiência influente no seio do Vaticano. Um abastado grupo de católicos conservadores, o Better Church Governance, chegou a promover uma investigação sobre a ortodoxia, a conduta e, claro, a orientação sexual de cada um dos 124 cardeais que vão eleger o próximo papa.
No centro dessa batalha, é evidente, estão os próprios padres, bispos e cardeais gays, enfrentando o conflito entre a tolerância relativa representada por Francisco e a hostilidade exemplificada por seu predecessor, o conservador Bento XVI. A proibição de 2005 a padres e seminaristas homossexuais segue em vigor e, na verdade, foi reafirmada por Francisco em 2016. O resultado é que quase todos os padres homossexuais permanecem no armário, com medo de serem atacados ou mesmo expulsos, o que os impede de participar da discussão. Ouvem o que falam a respeito deles, veem-se transformados em bodes expiatórios – o que muitas vezes é feito de maneira profundamente ofensiva, e sempre como se eles não fossem um dos principais alicerces da Igreja.
“Na verdade, as coisas pioraram desde que Francisco se tornou papa”, um padre me contou. “Padre gay virou sinônimo de abuso sexual. É uma caça às bruxas.”
No início do terceiro milênio da Igreja Católica, a crise dos abusos sexuais chacoalhou a consciência pública. De repente, todo o sistema de sigilo, autoproteção clerical, acobertamentos e escândalos foi brutalmente exposto. Para a maioria dos padres gays, tratou-se de um tremendo alívio. Eles ficaram tão horrorizados quanto qualquer um. Mas sabiam que o sistema agora desmantelado ocultara não apenas os crimes e os abusos dos maus padres, mas também os pecados e o sexo consensual e adulto dos padres bons. Tinham, eles próprios, seus segredos.
O celibato não é tarefa fácil, não podemos nos esquecer. Para boa parte das pessoas, é impossível não se apaixonar ou deixar de expressar fisicamente a sexualidade em algum momento da vida. Na prática, esses deslizes têm sido enfrentados e confessados; e, se os padres o fazem com sinceridade e voltam a se comprometer com o celibato, é-lhes permitido seguir adiante. Alguns dos padres homossexuais com os quais conversei reconheceram ter cometido faltas, mas insistiram que, tendo se aconselhado com seus superiores espirituais, escolheram o celibato ao se verem confrontados com uma escolha. E o fizeram, segundo me explicaram, para se libertar de toda e qualquer afeição amorosa em particular e assim poderem se dedicar por inteiro à Igreja.
Boa parte deles, no entanto, vivera algum tipo de incidente ou falta no passado que, se viesse à tona, poderia ser usado contra eles – ainda que se tratasse apenas de sua identidade como homossexuais. Desse modo, instalou-se uma espécie tóxica de omertà – os padres passaram a agir como um foro de destruição mútua garantida. Já que muitos colegas de sacerdócio estão a par da sexualidade e/ou das faltas dos outros, todos podem potencialmente chantagear uns aos outros. Faltas mundanas – um caso passageiro, por exemplo – podem facilmente se misturar a males profundos, como o abuso praticado contra crianças. Se um padre denuncia um colega como molestador de crianças, o denunciado pode expor a homossexualidade do denunciante e arruinar sua carreira.
Foi essa dinâmica – não a homossexualidade em si dos padres, mas o modo como ela é ocultada – que transformou o “armário clerical” num mecanismo central da tolerância e do favorecimento do abuso. Além disso, o voto de obediência aos superiores dá a bispos e cardeais gays enorme vantagem sobre seu rebanho. Alguns, é claro, se deram conta de que esse poder podia ser usado para o sexo e abusaram dele.
Novos procedimentos de proteção a menores de idade foram postos em prática a partir de 2002. Mas ainda há muito dano passado a enfrentar. O caso de McCarrick, em particular, revelou que o padrão de ocultamento e tolerância do abuso atingia o topo da hierarquia da igreja. João Paulo II, Bento XVI e Francisco, todos eles protegeram praticantes de abusos ou optaram por não enfrentá-los. E, como muitos dos criminosos sexuais eram também responsáveis por canalizar vastas somas de dinheiro para o Vaticano – Maciel e McCarrick são célebres por sua capacidade de arrecadação –, essa tolerância é revestida de particular cinismo.
Ainda não é claro por que o tradicionalista Bento XVI decidiu renunciar, mas alguns se apressaram em notar que, havendo compilado extenso dossiê sobre abuso sexual na Igreja, ele se sentiu incapaz de agir. A tarefa o subjugou? A escala o assustou? Terá temido o desmoronamento da Igreja como um todo? Francisco, em uma de suas primeiras entrevistas coletivas como papa, tomou rumo diverso: reiterou a distinção entre pecados e crimes e, embora tenha condenado o abuso, não insistiu na perfeição sexual dos padres – contanto que as faltas fossem confessadas e os pecados absolvidos, e que o sacerdote se comprometesse com um futuro de celibato. Depois, foi além na admissão de bons padres homossexuais na Igreja: “O problema não é possuir essa tendência, não. É preciso que sejamos todos irmãos e irmãs.” O problema, afirmou, estava em homossexuais virem a formar algum tipo de facção ou lobby no interior da Igreja – mas isso, explicou, valia para todos os lobbies: “Um lobby de avarentos, um lobby de políticos, um lobby de maçons.”
A mudança de tom de Francisco revoltou conservadores no Vaticano (e talvez tenha preocupado também poderosos praticantes de abusos sexuais, conscientes do papel desempenhado pelo “armário clerical” na manutenção do silêncio). E quando Francisco foi se aconselhar com McCarrick, um liberal moderado, aqueles que sabiam dos abusos que o cardeal praticara contra seminaristas se enfureceram. Num dos mais dramáticos atos de dissidência na história da Igreja moderna, o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio do Vaticano nos Estados Unidos, publicou uma carta, em agosto de 2018, afirmando que a prática de abuso por parte de McCarrick era do conhecimento tanto de Bento XVI quanto do Vaticano desde 2000; além disso, Francisco sabia desses abusos desde 2013, e agora fazia vista grossa. Observadores conservadores, como o ex-católico Rod Dreher e Ross Douthat, colunista do New York Times, falaram num novo “cisma” em potencial – no caso de Dreher, valendo-se de insultos, como a expressão “máfia púrpura”, para descrever a ameaça que via à doutrina estabelecida.
Viganò foi além. Pediu a renúncia do papa: “Precisamos pôr abaixo a conspiração do silêncio mediante a qual bispos e padres têm se protegido à custa dos crentes, uma conspiração que, aos olhos do mundo, ameaça fazer da Igreja uma seita, uma conspiração de silêncio não muito diferente daquela que impera na máfia.” E nomeou ainda alguns dos cardeais mais liberais que eram protegidos de McCarrick. “Ninguém no Vaticano se deixou enganar nem por um momento”, me disse James Alison, padre gay e teólogo bem informado sobre a política na Igreja. “Foi o mais próximo possível de uma exposição pública, algo a que ninguém se arriscaria, a não ser um jornalista de fora dos círculos católicos.” Alison acredita que a declaração pode ter prejudicado o próprio Viganò. “Até mesmo alguns de seus aliados mais conservadores se assustaram, pois perceberam o perigo de também serem expostos caso o episódio acabasse por acarretar uma grande guerra dentro do próprio armário da Igreja.” O resultado foi um recuo.
A declaração de Viganò soava verdadeira quanto a seu ponto crucial: cientes dos fatos, João Paulo II e Bento XVI haviam tolerado um cardeal homossexual e de comportamento abusivo, com quem Francisco também se aconselhara. É revelador que, confrontado com essa acusação, o papa não tenha feito nenhuma tentativa de negá-la – recusou-se a publicar qualquer documento que pudesse refutar as afirmações do ex-núncio e tão somente clamou por “silêncio” e orações.
Em setembro de 2018, Francisco pareceu ter perdido a calma. Chamou a carta de Viganò de obra do demônio: “Nos tempos que correm, parece que o Grande Acusador foi libertado das correntes e pôs-se a atacar bispos. Está tentando revelar os pecados, a fim de torná-los visíveis e escandalizar o povo.” Depois, convocou uma assembleia de cardeais do mundo todo, em Roma, com o propósito de discutir a questão do abuso sexual na Igreja.
É consenso que, para que a Igreja tenha alguma chance de restaurar sua autoridade moral, será necessário pôr fim a todo o aparato presente envolvendo sigilo, hipocrisia, abuso e homofobia. Mas como?
A reportagem da piauí pode ser lida na íntegra aqui.
The post Francisco, a igreja e os homossexuais first appeared on revista piauí.