De James Brown à Big Black, Jon Spencer dá aula de rock, punk e blues explosivo no Brasil

Por duas noites aceleradas (quase 30 músicas em quase 90 minutos), Jon Spencer deu aulas de punk, rock, garage e blues explosivo com “energia e paixão” em São Paulo e Jundiaí,

Abr 8, 2025 - 06:37
 0
De James Brown à Big Black, Jon Spencer dá aula de rock, punk e blues explosivo no Brasil

texto de Marcelo Costa
fotos de Fernando Yokota (coloridas / no Sesc Avenida Paulista)
fotos de Tiago Rossi (preto e branco / no Sesc Jundiaí)

Jon Spencer é um herói do rock sujo independente. Enquanto um monte de rockstarzinhos picaretas e vagabundos vagueiam pelo mundo como zumbis com os bolsos abarrotados de grana e a alma sem um pingo de paixão enganando desavisados, Jonathan Spencer segue, com seus 60 anos completados um dia após esses shows no Brasil, distribuindo ao vivo doses cavalares de garage rock, punk e blues explosivo para pequenas plateias de sortudos, selecionando momentos estelares de seus trabalhos com a Pussy Galore, Heavy Trash e Blues Explosion, seu projeto mais famoso.

Sem a companhia de Judah Bauer e Russell Simins, seus parceiros mais longevos, Jon Spencer vem tateando o inferno do rock a mais ou menos uma década, período em que lançou seu primeiro disco totalmente solo, “Spencer Sings The Hits!” (2018), ao lado do tecladista do Quasi, Sam Coomes, e do baterista M. Sord, formação que ele apelidaria de HITmakers em seu disco seguinte, “Spencer Gets It Lit” (2022). A fixação por hits é uma ironia, afinal, Jon Spencer estava mais interessado em falar sobre os posers e fakes do rock deste século do que em colocar uma música no topo da Billboard. Como escreveu um crítico sobre seu primeiro disco solo, “se a cultura contemporânea relegou Jon Spencer à lata de lixo, o mínimo que ele pode fazer é dançar sobre ela”.

Foto de Fernando Yokota

Dessa forma, em sua rápida (terceira) passagem pela América do Sul em abril, Jon Spencer fez cinco shows em cinco dias em três países, berrando alucinadamente no começo de todas as noites, e desmontando ele mesmo seu equipamento após cada massacre sonoro. Ao seu lado estavam a baixista Kendall Wind e o baterista Macky Bowman, a cozinha de uma jovem banda de Woodstock chamada The Bobby Lees, que teve seu segundo disco, “Skin Suit” (2020), produzido por Spencer. Diz um velho ditado que todo Mick Jagger irá encontrar seu Keith Richards, se assim o Diabo desejar. E, bem, Spencer encontrou Kendall e Macky, dois jovens músicos absurdamente talentosos. Há esperança para o fim do mundo.

Após se apresentar em Buenos Aires numa terça-feira, Jon, Kendall e Macky tinham dois compromissos em São Paulo (quarta e quinta) e um em Jundiai (sexta) antes de Jon partir para (assoprar velinhas de aniversário em) Santiago, no Chile (no sábado), e abandonarem a América do Sul na sequência. Definitivamente, um trio bastante dedicado à “estrada” da música (com aspas reluzentes). Na capital, Jon Spencer faria dois shows no Sesc Avenida Paulista (com jeito de inferninho) em duas noites de ingressos que se esgotaram em minutos semanas antes. Em Jundiai, o palco seria montado em formato 360 graus no ginásio para aproximadamente 500 sortudos que poderiam assistir ao show do power trio de qualquer ponto que desejassem. O Scream & Yell presenciou a noite de estreia em São Paulo e acompanhou a catarse de Jundiaí dois dias depois.

Foto de Tiago Rossi

A rigor, Jon Spencer não leva set list para o palco. As canções são definidas na hora, e ou Spencer avisa seus companheiros no berro, ou começa a canção com um riff de guitarra, que será coberto em segundos pela máquina de barulho formada pela baixista e pelo baterista – se pode parecer difícil de entender a vibe no calor de um show, fica facilmente perceptível no set que o trio fez no silencioso estúdio da KEXP recentemente. Um número inédito, “Get It Together”, seguido de uma porrada do Pussy Galore, “Nothing Can Bring Me Down”, abriu os dois shows, que, dai em diante, seguiria cada um por um caminho: se a primeira noite em São Paulo soou mais blues, com Spencer resgatando “I Don’t Mind”, uma pérola do clássico “Live at Apollo” (1963), de James Brown, em um dos grandes momentos da noite, Jundiaí seria surpreendida com “Power of Independent Trucking”, metralhadora que abre “Songs About Fucking” (1987), estreia icônica do Big Black, de Steve Albini.

Os sets têm quase 30 canções e valorizam o álbum lançado pelo trio no final de 2024: “Sick of Being Sick”, o disco, cede ao show números como “Wrong”, “Come Along”, “Get Away”, “Disconnected”, “Coulda Been” e “Fancy Pants”, e as versões de estúdio são elevadas ao espaço pelo trio, com destaque para a condução absurda de Macky, que esmaga seu kit sem dó e bate com fúria nos pratos. Kendall também é um assombro, não apenas pelas linhas inteligentes que ela desfila no baixo, mas também por recriar de maneira impressionante em seu baixo os riffs da guitarra de Judah Bauer, famosos em canções da Blues Explosion, como “Skunk”, “Wail” e “2Kindsa Love”, três do grande “Now I Got Worry” (1996) presentes nos sets.

Foto de Fernando Yokota

A dobradinha “Afro”/”Alright” (Blues Explosion / Pussy Galore), usada na primeira parte dos dois shows, é absolutamente irresistível, e Spencer ainda tem a manha de enfileirar canções separadas – discograficamente – por 30 anos, como “Ghost”, uma faixa fodona de seu álbum solo de 2018 que soa impecável ao vivo, seguida de “Sweet Little Hi-Fi”, porrada de riff cortante que a Pussy Galore cravou num EPzinho lançado pela Caroline Records em 1998, para delírio do capeta que mora dentro de cada um de nós. Mas, calma, tem mais: singles como “Train #3” (que saiu pelo selo indie In The Red, de Los Angeles) e “Bellbottoms” (publicado pela Matador Records) incineram a festa, mas as mais festejadas são as canções de “Acme” (1998): “High Gear”, “I Wanna Make It All Right” e, principalmente, “Talk About The Blues” arrancam urros da plateia.

Ainda houve espaço para “(Sometimes You Got To Be) Gentle”, uma canção do Heavy Trash (banda com a qual Jon Spencer se apresentou ao lado de Zé do Caixão na MTV Brasil em sua segunda passagem pelo Brasil), e um cover de Ty Wagner & the Scotchmen, “I’m a No-Count”, garageira dos anos sessenta, que o trio tocou com o próprio no tal set da KEXP, entre um tanto de outras coisas. Nem o fã mais ardoroso deve ter sacado tudo que rolou nesses shows, o que, de certa forma, valida que o que Jon Spencer tem a oferecer a seu público é… um momento único, aquele em que artista e banda são uma coisa só, ouvindo música boa e barulhenta para desentupir as artérias da alma, algo bem diferente daqueles mega-hits que os fãs berram a letra mais alto do que o que está saindo pelas caixas de som, a banda como decoração de luxo para karaokês adultescentes.

Por duas noites aceleradas (quase 30 músicas em quase 90 minutos), Jon Spencer deu aulas de punk, rock, garage e blues explosivo com “energia e paixão” em São Paulo e Jundiaí, cumprindo a promessa que ele fez ao final da entrevista que concedeu ao Scream & Yell, em mais uma daquelas noites que – mesmo sem rojões nem fogos de artificio no céu (ou, talvez, devido a ausência de tudo isso mesmo, afinal era um show de rock, não um cirquinho musical) – parecem, de alguma forma, históricas. Ou apenas verdadeiras, algo que vem fazendo muita falta à música (e à humanidade) deste milênio… Precisa mais?

Foto de Tiago Rossi

Set list do show em Jundiaí

“Get It Together” (Inédita)
“Nothing Can Bring Me Down” (Pussy Galore, 1988)
“Wrong” (Jon Spencer, Kendall Wind e Macky Bowman, 2024)
“Do The Trash Can” (Jon Spencer, 2018)
“Afro” (Jon Spencer Blues Explosion, 1993)
“Alright” (Pussy Galore, 1987)
“Worm Town” (Jon Spencer & The HITmakers, 2023)
“2Kindsa Love” (Jon Spencer Blues Explosion, 1996)
“Ole Man Trouble” (Jon Spencer Blues Explosion, 1993)
“Come Along” (Jon Spencer, Kendall Wind e Macky Bowman, 2024)
“Get Away” (Jon Spencer, Kendall Wind e Macky Bowman, 2024)
“Coulda Been” (Jon Spencer, Kendall Wind e Macky Bowman, 2024)
“Sweat” (Jon Spencer Blues Explosion, 1994)
“Talk About The Blues” (Jon Spencer Blues Explosion, 1998)
“Train #3” (Jon Spencer Blues Explosion, 1993)
“Power of Independent Trucking” (Big Black, 1987)
“High Gear” (Jon Spencer Blues Explosion, 1998)
“Ghost” (Jon Spencer, 2018)
“Sweet Little Hi-Fi” (Pussy Galore, 1988)
“Disconnected” (Jon Spencer, Kendall Wind e Macky Bowman, 2024)
“Bellbottoms” (Jon Spencer Blues Explosion, 1994)
“Skunk” (Jon Spencer Blues Explosion, 1996)
“Wail” (Jon Spencer Blues Explosion, 1996)
“Junk Man” (Jon Spencer & The HITmakers, 2023)
“I Wanna Make It All Right” (Jon Spencer Blues Explosion, 1998)
“Fancy Pants” (Jon Spencer, Kendall Wind e Macky Bowman, 2024)
“(Sometimes You Got To Be) Gentle” (Heavy Trash, 2009)
“I’m a No-Count” (Ty Wagner, 1965)

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.