Cinema: Em “Better Man”, Robbie Williams expõe suas cicatrizes de modo descontraído (e tocante)

Robbie Williams nunca foi o tipo de artista que se leva muito a sério, e seu papel aqui - como narrador de sua própria histdefinitivamente solidifica essa impressão.

Mar 19, 2025 - 08:23
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Cinema: Em “Better Man”, Robbie Williams expõe suas cicatrizes de modo descontraído (e tocante)

 

texto de Davi Caro

“Quem é Robbie Williams? Um narcisista, digno de socos”, começa a narração. A voz, claro, é do próprio Robbie, que surge como o relator de sua própria trajetória ainda antes do fim dos créditos iniciais de “Better Man: A História de Robbie Williams”. Todo espectador que se disponha a ver o novo filme de Michael Gracey, lançado em 2024 no exterior e que finalmente chega às salas brasileiras, consegue, de fato, responder esta pergunta fundamental. Afinal, o cantor e compositor britânico é uma das figuras mais inescapáveis (e, porque não dizer, controversas) dos últimos 30 anos de cultura pop. De uma ascensão meteórica como o coadjuvante em uma boyband até uma carreira solo grande o suficiente para eclipsar seus modestos passos iniciais, passando por uma vida pública turbulenta e recheada de rumores dignos de tabloides, não são poucas as possibilidades de resolução deste enigma. E, ainda assim, a mesma contestação ecoa, repetidas vezes, de formas cifradas – e, às vezes, nem tanto – ao longo das pouco mais de duas horas do novo longa. Então, quem, de fato, é Robbie Williams?

A maneira cândida com a qual o tema é endereçado por seu personagem principal começa a surpreender a partir de uma curiosa escolha estética: no filme que dramatiza sua própria história de vida, Williams é representado como um macaco. O que poderia ser apenas uma forma sutil de endereçar distanciamento social pode ser, na verdade, interpretado como uma espécie de auto-crítica da parte do artista em relação à sua própria personalidade. “Me tornei famoso aos 15 anos”, ele relata, em um ponto do filme. “Eu ainda não era evoluído quanto às outras pessoas”. A selvageria, outro atributo que pode ser associado tanto aos primatas quanto ao próprio Robbie, não chega perto de explicar a sutileza e a fragilidade que os efeitos computadorizados, embora falhos em alguns momentos, são capazes de transparecer. Ao fim, dá para dizer que o motivo pelo qual Williams aprovou e incentivou a decisão tem mais a ver com a tendência a seguir os próprios instintos – sejam quais forem as consequências disso.

Desde a infância proletária na cinzenta cidade inglesa de Stoke-On-Trent dos anos 80, o sonho de fama de Robert Williams já se mostra um conceito muito mais instintivo do que adquirido. “Ou você o tem, ou você não é ninguém”, diz o pai do futuro cantor, Peter (Steve Pemberton), cuja fantasia com o estrelato (inspirada por ícones como Frank Sinatra) o leva a adotar o pseudônimo Peter Conway em suas parcas atuações como comediante e entertainer. O abandono da família por parte deste último leva o desajustado jovem a estreitar ainda mais a relação com a mãe, Janet (Kate Mulvany) e sobretudo com a avó, Betty (Alison Stedman). Os prospectos acadêmicos e a vocação para o estrelato acabam por afastar o rapaz dos estudos e o levam a uma audiência com o empresário Nigel Martin-Smith (Damon Herriman), que acaba por contratar o promissor artista como membro do quinteto que, logo em frente, seria conhecido como Take That.

A jornada do grupo até o estrelato, contada principalmente por meio de uma bem coreografada montagem ao som de “Rock DJ” (em um formato que se repete algumas vezes ao longo do filme) é um dos acertos do roteiro, à medida que os cinco jovens saem do circuito de bares gay e alcança alguns dos maiores palcos do Reino Unido. A insegurança de Robbie como membro da banda, assim como seu esforço em se afirmar como letrista frente ao carisma dos colegas – e ao talento musical de Gary Barlow (Jake Simmance) – o empurra para o abuso de álcool e drogas, e acaba por não só cultivar uma reputação de “garoto-problema” diante da mídia como também por resultar em sua saída do grupo. E, mesmo em suas interjeições como narrador, Williams não procura em momento algum se isentar da culpa ou de seu incontrolável comportamento nesta época. A súbita reaproximação do pai, e a exposição das mulheres que o criaram ao assédio que a fama traz, apenas faz aumentar a alienação do jovem popstar. Mesmo o início de um relacionamento com a também cantora, e integrante do All Saints, Nicole Appleton (Raechelle Banno) não vêm sem suas provações – sobretudo com um aborto, aludido por meio de outra montagem musical, do filho dos dois, em prol da carreira desta – e os abusos de substâncias, somados à infidelidade, abrem um abismo emocional (e, aos poucos, definitivo) no casal.

O encontro de Williams com Guy Chambers (Tom Budge) acentua o desejo instigado no cantor pelos irmãos Gallagher, do Oasis, por se tornar um sucesso solo grande o suficiente para encher o festival anual de Knebworth (que a banda de Manchester lotou duas vezes em 1996). O preço a se pagar, no entanto, é caro, e a rota de autodestruição na qual Robbie embarca acaba o distanciando das principais figuras em sua vida. O rompimento das relações com o pai oportunista e a subsequente morte da avó fazem com que a batalha interna do cantor em busca de aprovação o leve, logo após a realização de seu sonho, às provações da reabilitação – da qual emerge, vitorioso, após um acerto de contas consigo mesmo e com seu passado (em um dos poucos momentos menos inspirados do longa, onde a sutileza dá lugar a efeitos visuais que podem desconectar o espectador).

Apesar de algumas situações onde o uso de efeitos visuais é mais destoante, tudo trabalha em favor do lúdico e (como não) do entretenimento. Além das performances de apoio (em especial da família de Robbie, com destaque para o quase sempre inconveniente Peter vivido por Steve Pemberton), o filme marca outro ponto com o bom uso das muitas canções de sucesso da carreira de Williams, solo ou não. A passagem que representa a triunfal performance de Knebworth, embalada por “Let Me Entertain You”, é memorável em sua riqueza de detalhes, refletindo o caos mental pelo qual o artista passava no momento. A perda da avó, sonorizada por “Angels”, é tão tocante quanto a resolução do luto, ao som da homônima “Better Man”.

Mesmo os menos entusiastas da música de Robbie podem achar difícil conter lágrimas em alguns momentos, ou ao menos reconhecer o potencial das canções que o homem coleciona em seu catálogo. Por mais óbvio que possa parecer, só isso já seria capaz de diferenciar o trabalho de Michael Gracey (cujo outro crédito cinematográfico de grande orçamento é “O Rei do Show”, de 2017) das várias cinebiografias lamentáveis que outros astros pop já receberam.

Mas o grande diferencial está mesmo no protagonista, e em sua irrestrita participação como narrador de sua jornada: Robbie Williams nunca foi o tipo de artista que se leva muito a sério, e seu papel aqui definitivamente solidifica essa impressão. Porém, ao invés de glorificar as muitas atribulações pelas quais passou em favor da própria arte, o cantor expõe suas cicatrizes de modo descontraído, porém não menos tocante por causa disso. Suas canções são enfileiradas para que seus muitos seguidores e detratores possam testemunhar o quão inegável seu legado é, mas sem nunca esconder os sacrifícios físicos e psicológicos que o acometeram no caminho. Ainda que pelos olhos de uma espécie tão diferente, e ao mesmo tempo tão semelhante a nós, Williams não consegue se esconder de seu público, ou de si mesmo. E o resultado é digno da atenção tanto de seus fãs quanto de espectadores mais curiosos. A pergunta do início do filme encontra, finalmente, sua resposta mais perfeita: “O que eu faço é apenas cabaré”, ele diz ao final, “mas é cabaré de primeira classe. E nisso eu sou o melhor.” Mesmo para os mais céticos, é difícil de duvidar.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.