A desordem internacional
Há mudanças no ar, uma transformação que pode determinar alterações profundas na Ordem Internacional. Mas existe esperança de que haja coordenação entre os estados e que a transição para um mundo menos globalizado não signifique forçosamente o conflito.


Em tempos de uma Ordem Internacional em transição, acelerada pelos eventos mais recentes e pelo reposicionamento da superpotência, os Estados Unidos da América, vários países estão a enfrentar ou lidaram com escrutínios eleitorais e com uma polarização política e social.
É nesse contexto que Portugal vai a eleições no próximo dia 18 de maio. Tal como nos outros países, tradicionalmente, não se discute a política externa nem os desafios de um novo contexto internacional, apesar de ser este novo enquadramento ser a causa da maior parte dos desafios a que as políticas nacionais têm que responder.
Em tempos de recrudescimento das assimetrias sociais internas e das clivagens entre Estados, a política externa continua a ser tratada como se fosse algo fora do contexto das políticas nacionais. Este posicionamento não deixa de ser curioso, sobretudo, nos países mais desenvolvidos, com uma opinião pública mais atenta, pois faz transparecer a falta de consciência das consequências diretas de décadas de globalização que generalizaram o conceito de interdependência. Se, por um lado, os defensores das interdependências afirmam ser este o melhor caminho para a paz, porque incrementa as interações entre os vários países, por outro lado, os detratores da globalização veem nesta um sério ataque à soberania e às economias nacionais.
Contudo, foi notório que o período mais favorável para as economias desenvolvidas e em que as economias menos desenvolvidas eram subsidiárias do sistema, a globalização nunca levantou questões de fundo. As dúvidas relativamente a este processo vinham, essencialmente, dos grupos sociais mais vulneráveis nos vários países.
O ponto de viragem ocorre quando algumas das economias menos desenvolvidas se tornam agentes de globalização e começaram a subir na cadeira de valor dos produtos sofisticados. A China é o protagonista mais reconhecido enquanto tal, mas países como a Turquia, a Índia, o Brasil e o México, por exemplo, pela dimensão da sua força de trabalho e dos seus segmentos de consumidores representam um novo desafio para a orgânica tradicional da globalização.
Não é só a economia
Todavia, não foi só a economia que mudou. A Ordem Internacional foi sacudida por eventos disruptivos. A guerra na Ucrânia foi um destes fatores, trazendo de volta a solo europeu o horror do conflito armado, que parecia afastado desde a guerra nos Balcãs, traduzindo-se numa tendência para a formação de blocos que vinham sendo gizados desde o aumento da concorrência comercial. A guerra em Gaza é outro elemento disruptivo da ordem internacional.
Contudo, foram os eventos inesperados como a Covid-19, com a disrupção das cadeias de produção e das cadeias logísticas, os eventos climáticos extremos, combinados com o surgimento de guerras intermináveis junto à fronteira da União Europeia aceleraram um processo já em curso.
A tensão política e a competição no cenário geopolítico resultam da consciencialização das fragilidades da globalização e, sobretudo, a incapacidade de ser impossível manter o modelo de globalização e de governação global até agora seguido. As organizações como os BRICS, o G20 e até os fóruns regionais constituídos pela China testemunham essa alteração de estatuto que vários estados foram adquirindo na cena internacional. Relutantes em aceitar uma atualização dos modelos de governação global, as potências do mundo desenvolvido travaram o anseio das potências emergentes.
Ao negar uma alteração da Ordem Internacional ou um ajuste da mesma, velhos e novos senhores da globalização entraram em fricção, introduzindo elementos desestabilizadores à governação global.
A desumanização da ordem
Curiosamente, não foi a afronta dos poderes emergentes que acabou por liderar o processo de desafio a ordem. Claro que houve um papel por parte das potências que desejam agora um papel na governação global, particularmente, na sua reivindicação por uma maior participação nas decisões das organizações globais. As potências tradicionais, na sua resposta aos elementos disruptivos ou enquanto suas criadoras, acabaram por contribuir para a aceleração da desarticulação do próprio sistema das Nações Unidas ou da Organização Mundial de Comércio, garantes da manutenção da Ordem Internacional.
A desumanização da guerra, principalmente em Gaza, mostrou a incapacidade de resposta do sistema das Nações Unidas que não conseguiu reverter a criação de um campo de morte a céu aberto. Os constantes bombardeamentos da população civil, limitada a um território exíguo e completamente destruído, associados à impossibilidade de entrada de ajuda humanitária, configura um crime contra a humanidade. Aliás todas as guerras que têm por alvo populações civis constituem crimes contra a humanidade. Mas neste caso assume contornos mais graves, pelo grau de destruição e pela morte lenta a que condenou quem não teve outra opção senão permanecer num território violentado pelos permanentes ataques.
A barbárie instalada sem que a denominada “comunidade internacional” consiga ativar qualquer um dos mecanismos de salvaguarda da vida humana, demonstra que a Ordem Internacional entrou numa fase de desumanização, idêntica à que assistimos durante outros períodos sombrios da história da humanidade.
A traição reiterada aos valores que tiveram na origem as Nações Unidas, num cenário de imprevisibilidade superior ao do quadro da Guerra Fria, em que existiam oponentes bem identificados e alinhamentos definidos, condena ao fracasso as últimas décadas de acalmia nos conflitos internacionais que não deixando de existir, como nos lembram, como exemplo, o Sudão e o Iémen, não assumiram proporções capazes de destabilizar seriamente a Ordem Internacional.
Todos estes elementos nos indicam que há mudanças no ar, uma transformação que pode determinar alterações profundas na Ordem Internacional. Há reajustes na cooperação internacional e até a nomeação de um novo Papa que terá de lidar um legado profícuo na intervenção pela humanização das relações entre povos. Existem, portanto, muitos fatores que contribuem para estes tempos trazerem ainda mais alterações ao panorama habitual.
O renascer
Existe esperança de que haja coordenação entre os estados e que a transição para um mundo menos globalizado não signifique forçosamente o conflito. O reposicionamento de alguns estados e cooperação inter-regional podem ser a chave de uma governação global mais fraturada, mas responsiva a questões como a urgência climática, a governação do mar e as necessárias transições para a sustentabilidade.
No entanto, será determinante a forma, como a sociedade civil encara estas questões e como estará ou não apta a contribuir para soluções. Um primeiro passo seria as questões de política externa e, principalmente, os impactos da política internacional serem parte do debate político interno. As consequências da desestabilização da Ordem Internacional têm impacto direto na vida do quotidiano e, geralmente, afetam mais os grupos mais vulneráveis da sociedade. A sua permanente ausência do debate político significa que uma boa parte das decisões que afetam diretamente o nosso modo de vida não são trazidas para o debate público. E, infelizmente, esta situação tem marcado não só o ambiente em Portugal, como nos restantes países a enfrentar escrutínios eleitorais.