O futebol feminino e a ilusão do progresso

Declínio de projetos como o do Iranduba é prova de que regulações recentes pioraram o cenário do futebol feminino brasileiro O post O futebol feminino e a ilusão do progresso apareceu primeiro em MKT Esportivo.

Mar 18, 2025 - 12:59
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O futebol feminino e a ilusão do progresso

Na última semana, aproveitando a ocasião do Dia Internacional das Mulheres, publiquei um artigo explicando como os Estados Unidos se tornaram uma potência no futebol feminino, ao mesmo tempo em que sofrem para se consolidar no cenário internacional no masculino. Como uma discussão mais completa sobre esse assunto tornaria o texto muito longo, o primeiro artigo foi simplesmente uma descrição da história por trás da ascensão do futebol feminino no país. Esse texto, em uma espécie de continuação, tem como objetivo aprofundar um pouco a discussão acerca de regulações no esporte feminino no Brasil – especialmente no futebol feminino.

Para tentar entender o impacto gerado por legislações e regulações, é preciso entender primeiramente que objetivos elas buscam cumprir. Iniciando a análise pelo contexto norte-americano, expliquei na semana passada que o Title IX foi desenhado com a finalidade garantir a igualdade de oportunidades em instituições de ensino no país. Nesse cenário bastante específico, a legislação foi elaborada visando aumentar as oportunidades de ensino e de prática esportiva para mulheres nos Estados Unidos, e não há qualquer dúvida de que o resultado foi positivo considerando esses objetivos. Ao longo das últimas cinco décadas, milhões de mulheres americanas tiveram seus estudos viabilizados e viram aumentar suas oportunidades de prática esportiva como resultado direto de uma legislação bem-sucedida. Não seria justo, no entanto, que uma análise sobre impactos do Title IX focasse em aspectos como público presente em eventos esportivos femininos, por exemplo, uma vez que a legislação não foi pensada com essa finalidade.

Quando analisamos a realidade brasileira, por outro lado, não consigo ver a evolução do esporte feminino com um olhar tão otimista. A principal regulação relacionada ao futebol feminino, na minha visão, foi a criação de regras de licenciamento para a disputa de competições oficiais por parte da CBF em 2017. Na ocasião, a entidade reguladora do futebol brasileiro determinou que, a partir de 2019, equipes disputando a primeira divisão nacional no masculino deveriam também participar de competições no futebol feminino. O objetivo me parece bastante óbvio: aumentar as oportunidades para que mulheres pratiquem o esporte em nível competitivo, seja profissionalmente ou nas categorias de base. Dessa vez, no entanto, acredito não apenas que a regulação não surtiu os efeitos desejados, mas também que o próprio racional por trás da medida não é adequado.

Comecemos tratando dos efeitos observados atualmente. O Athletico Paranaense, por exemplo, recentemente descontinuou seu departamento de futebol feminino após ser rebaixado para a Série B – onde a obrigação de se investir em uma equipe feminina deixa de valer. O Ceará, de maneira semelhante, desistiu de competir na segunda divisão nacional na última temporada após um ano vergonhoso na primeira divisão em 2023, quando já havia atuado com o único propósito de não sofrer punições fora de campo. Na ocasião, a equipe cearense conquistou um ponto em quinze rodadas, viralizando o episódio de sua goleira saindo de campo chorando após a goleada por 14 a 0 sofrida para o Corinthians na primeira rodada. O Atlético Mineiro apresentou desempenho igualmente fraco na última temporada, somando um empate e quatorze derrotas no último Brasileirão, resultado de um claro desinteresse e falta de investimento na categoria. A conclusão é clara: exemplos não faltam de que os clubes não adotaram a mudança com a seriedade que se esperava, não apresentando o menor pudor em se humilhar em campo como resultado direto da falta de interesse e investimento.

Muito mais preocupante, no entanto, é o fato de que os resultados não são resultado somente da falta de interesse de dirigentes, mas de uma política mal pensada que não corre o menor risco de dar certo no futuro. As tentativas de remediar a situação – a CBF explora as ideias de aumentar a primeira divisão feminina para vinte times e de também obrigar times de divisões nacionais inferiores a montar equipes femininas, por exemplo – não devem trazer qualquer alívio, contribuindo para piorar ainda mais um ambiente que já parece repleto de más ideias. O principal ponto desse meu artigo, nesse sentido, é que imposições regulatórias não têm a capacidade de criar o interesse necessário ao redor do futebol feminino, e a obrigatoriedade de equipes femininas para clubes da Série A contribui ativamente para piorar o cenário.

Para tentar organizar meu argumento, gostaria de voltar ao exemplo dos esportes universitários nos Estados Unidos. Minha universidade, Florida State University, é sem sombra de dúvidas a grande potência do futebol feminino universitário desde a última década, chegando às semifinais nacionais em sete edições entre 2014 e 2023 – período em que conquistou quatro títulos nacionais. Ainda assim, os resultados fora de campo nunca deslancharam: a equipe continua jogando em um estádio para capacidade para menos de duas mil pessoas, com arquibancadas que não se lotam com tanta frequência. Isso tudo a cerca de cem metros de um dos maiores canteiros de obras do estado da Florida atualmente, no qual a universidade tem investido mais que um bilhão de reais na reforma de seu estádio de futebol americano.

Exemplos assim não faltam em campus ao redor dos Estados Unidos. Na verdade, se contam nos dedos os reais sucessos comerciais em torno de esportes femininos nas universidades americanas. Tratei do fenômeno Caitlin Clark em dois artigos no passado, por exemplo, mas também consigo pensar nos casos da equipe de softball da Universidade de Oklahoma e da equipe de vôlei da Universidade do Nebraska. Oklahoma é a atual tetracampeã consecutiva do softball universitário e liderou um movimento que vai levar as partidas de softball das próximas Olimpíadas para longe de Los Angeles, enquanto Nebraska atualmente detém o recorde mundial de público em um evento esportivo feminino, com mais de 92 mil pessoas. Para além desses exemplos, o esporte feminino americano só é um sucesso no que realmente se propõe a fazer: gerar oportunidades de estudo e de prática esportiva para centenas de milhares de mulheres anualmente.

Voltando ao caso brasileiro, é importante ter em mente que os objetivos deveriam ser outros. Não há qualquer enfoque educacional nas medidas tomadas pela CBF, de forma que o sucesso comercial do futebol feminino no Brasil deveria ser a grande prioridade. Da mesma forma que os esportes femininos jamais conseguirão ultrapassar o futebol americano no campus universitários dos Estados Unidos, os times de futebol feminino também não conseguirão superar suas contrapartes masculinas no Brasil. Proponho um exercício bastante simples: abra as redes sociais do Corinthians, grande exemplo de sucesso (dentro e fora de campo) no futebol feminino e que patinou no masculino nas últimas temporadas, e conte o número de referências ao time feminino. O time masculino sempre será a prioridade nos clubes de Série A, por mais respeito que se tenha pelo esporte feminino, e lutar contra isso não leva a lugar algum.

“E qual é o seu ponto? Qual seria, então, a solução?”, você talvez me pergunte. Para propor a solução, te convido a abrir a tabela do Campeonato Brasileiro Feminino de 2018, ano anterior à implementação das medidas regulatórias atualmente em vigor. Note que o Corinthians, grande projeto de futebol feminino no Brasil atualmente, já dominava o cenário nacional naquela época. Equipes como Santos e Flamengo também apresentavam grande destaque, mostrando que não havia qualquer impedimento para que grandes clubes brasileiros investissem e obtivessem bons resultados na categoria. O que se nota de diferente, no entanto, é o sumiço de bons projetos ao redor do país, sendo o Iranduba o mais notório deles. O Hulk da Amazônia, que chegou a receber mais de 25 mil torcedores para uma partida de futebol feminino em 2018, perdeu espaço e passou a definhar com a falta de patrocínios. São José, Rio Preto e Foz Cataratas são outros exemplos de projetos promissores que perderam espaço.

Na minha modesta opinião, o futebol feminino brasileiro teria muito mais a ganhar com bons projetos em cidades periféricas (no cenário do futebol) do que com uma enorme lista de grandes potências do masculino que pouco se importam com o feminino. A CBF deveria focar em fomentar e apoiar projetos em cidades como São José dos Campos (SP), São José do Rio Preto (SP) e Foz do Iguaçu (PR), com populações relevantes e órfãs de times competitivos no masculino, ao invés de forçar o futebol feminino enquanto produto em mercados já absolutamente saturados. Prova dessa saturação são os públicos quase nulos nos campeonatos da categoria, com raríssimas exceções. O crescimento forçado de clubes desinteressados no futebol feminino é diretamente responsável por destruir oportunidades comerciais de clubes promissores ao redor do país, e o resultado são campeonatos repletos de arquibancadas vazias.

Assim como as ligas americanas mapeiam as oportunidades ao redor do país para decidir onde implantar franquias de expansão (ou aprovar mudanças de franquias de cidades), a CBF deveria fazer um trabalho mais ativo mapeando e auxiliando bons projetos. O Brasil possui cerca de uma centena de cidades com população superior a 250 mil habitantes e sem time nas três primeiras divisões do futebol nacional. O futebol feminino carece de projetos que realmente sejam capazes de abraçar e representar suas comunidades, enquanto dezenas de milhões de brasileiros precisam se contentar em assistir ao esporte mais popular do país pela televisão por falta de acesso. É (ou, ao menos, deveria ser) papel da CBF ajudar a conectar esses pontos, crescer e difundir as oportunidades de acesso ao esporte no país. O esporte feminino universitário nos Estados Unidos não tem esse tipo de preocupação – e é legítimo que não tenha –, mas o futebol brasileiro deveria ter. Nesse mês das mulheres, deveríamos repensar se a ideia de simplesmente ter um campeonato funcional basta, ou se o futebol feminino merecia também a oportunidade de se tornar um produto de fato prestigiado.

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