Francisca P. Pinto, da Livraria Lello: “Um livro não se mede apenas pelo seu valor de mercado”

Nesta entrevista, a diretora de marca da Livraria do Porto fala de lendas, como a ligação a Harry Potter, e de realidades incontornáveis, como o impacto na cena literária global.

Abr 16, 2025 - 22:13
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Francisca P. Pinto, da Livraria Lello: “Um livro não se mede apenas pelo seu valor de mercado”

No coração do Porto, entre as ruas carregadas de história e as vozes de milhares de visitantes, ergue-se um verdadeiro templo dedicado à literatura e à arte: a Livraria Lello.

Mais do que uma simples livraria, este espaço centenário é uma ode à beleza do livro, à persistência da cultura e à capacidade única que os lugares têm de contar histórias. Fundada oficialmente em 1906, mas com raízes que remontam ao sonho visionário de José Lello e à herança editorial de Ernesto Chardron, a Livraria Lello tornou-se, ao longo das décadas, um ícone literário nacional e internacional.

Nesta entrevista exclusiva à Marketeer, Francisca Pedro Pinto, da direção de marca da Livraria Lello, conduz-nos por uma viagem à história do estabelecimento.

Aqui, fala-se de lendas, como a suposta ligação a Harry Potter, e de realidades incontornáveis, como o impacto na cena literária global, a sua programação cultural vibrante e o desafio diário de equilibrar o turismo com a missão literária.

A Livraria Lello é, hoje, muito mais do que uma loja. É um espaço vivo, onde a imaginação se cruza com a história e onde cada visitante é convidado a descobrir o poder transformador da leitura.

Qual é a origem da Livraria Lello e quais foram os momentos mais marcantes da sua história?

A Livraria Lello surgiu da paixão de José Lello pela literatura, consolidando-se como um ícone cultural desde 1906. Antes disso, a aquisição do catálogo de Ernesto Chardron foi um marco determinante, permitindo à livraria tornar-se um verdadeiro templo do conhecimento. Ao longo das décadas, ganhou notoriedade internacional, mas enfrentou desafios na segunda metade do século XX, com o declínio do edifício e do acervo.

Em 2015, uma nova gestão revitalizou o espaço, conciliando turismo e preservação literária através de um voucher de visitação. As obras entre 2016 e 2017 restauraram a arquitetura original, enquanto a reedição de clássicos reafirmou o compromisso com a literatura. A Livraria Lello aposta ainda numa intensa programação cultural e parcerias estratégicas, como a Fundação Saint-Exupéry e a Fundação José Saramago, reforçando seu papel como centro de cultura e arte. Hoje, continua a celebrar o livro como objeto de arte e conhecimento, mantendo-se como um espaço vivo e dinâmico para leitores e visitantes.

Há alguma lenda ou curiosidade pouco conhecida sobre a livraria? Qual?

A lenda que mais tinta tem feito correr é a que liga a Livraria Lello à saga Harry Potter. Para uns, a livraria inspirou a autora. Para outros, foi cenário dos filmes. A verdade? Embora saibamos que apenas cerca de 10% das pessoas que nos visitam o fazem por essa razão, hoje sabemos que é efetivamente uma lenda. Durante a pandemia, a autora revelou nunca ter estado na livraria, embora tenha dito: “É linda e quem me dera ter podido visitá-la…”

Assim, temos de aceitar que nem a escadaria nem a livraria serviram de inspiração a J.K. Rowling. Mas a verdade é que quem por cá passa encontra um mundo mágico, e muitas vezes reconhece Hogwarts nas nessa magia. O que nos leva à grande lição de Umberto Eco: “Nem eu, como autor das minhas obras, posso entrar pelo bosque da ficção como se estivesse a entrar no meu jardim privado.” No fundo, a imaginação de cada um faz da Livraria Lello aquilo que quiser.

Mas há muitas outras curiosidades que tornam este lugar único. Como as lotarias coladas debaixo das estantes, que nos lembram que os sonhos sempre fizeram parte desta casa. Ou as marcas das estantes e dos pipos de vinho na cave, vestígios de uma livraria que, antes de o ser, já carregava histórias. Há também a assinatura de Xavier Esteves, o arquiteto da livraria, gravada discretamente numa das colunas da escadaria – uma espécie de marca de orgulho na sua obra. E, mais recentemente, os restauradores do nosso vitral deixaram a sua própria marca: um pequeno smile, escondido entre os desenhos de vidro colorido.

O impacto da Livraria Lello na cena literária portuguesa e internacional ao longo dos anos é grande. Ainda assim, consegue destacar 2 ou 3 momentos mais impactantes?

O impacto da Livraria Lello no panorama literário, tanto em Portugal como no mundo, mede-se pela forma como continuamos a desafiar o lugar do livro na sociedade. Somos um espaço de resistência e inovação, que preserva o passado enquanto traça o futuro da literatura.

Entre os momentos mais marcantes, destacamos a nossa aposta na edição própria, criando colecções que transformam o livro num verdadeiro objeto de desejo. O reconhecimento internacional chega-nos através de distinções como o Platina da Graphis para a Pop Collection e os prémios atribuídos à Little Collection, que celebra o papel da ilustração na experiência da leitura.

Outro motivo de orgulho é o facto de muitas universidades no mundo estudarem a Livraria Lello como um caso de inovação no sector livreiro. Há alunos que nos procuram porque estão a desenvolver teses académicas baseadas no nosso modelo de negócio, que alia a valorização da cultura a uma estratégia sustentável. O nosso percurso tem sido acompanhado com interesse por investigadores e especialistas, o que reforça a nossa responsabilidade e o compromisso com o futuro do livro.

Mas um dos momentos que melhor traduz a nossa missão foi a OPA da Livraria Lello – uma Oferta Pública de Aquisição que lançou um debate essencial: o livro como investimento cultural e patrimonial. Para demonstrá-lo, seleccionámos três obras emblemáticas:

A Gazeta da Restauração, o primeiro jornal da República Portuguesa. Uma primeira edição d’Os Lusíadas.

Uma primeira edição do primeiro livro da saga Harry Potter.

O caso de Harry Potter and the Philosopher’s Stone é paradigmático. A edição original, publicada nos anos 90, custava 10,99 libras. Adquirimo-la por cerca de 60 mil euros e, pouco tempo depois, um exemplar idêntico foi leiloado em Nova Iorque por 250 mil euros. Esta valorização demonstra que, em determinadas circunstâncias, um livro pode ser um investimento comparável a uma obra de arte.

E se falamos de impacto no universo literário, há algo que nos enche de orgulho: somos a casa que mais exporta José Saramago para o mundo. Fazemo-lo não apenas porque acreditamos no valor imensurável da sua obra, mas porque reconhecemos o nosso papel enquanto embaixadores da literatura portuguesa além-fronteiras.

Quantos visitantes a livraria recebe anualmente e quais as nacionalidades mais comuns entre eles?

A Livraria Lello recebe anualmente cerca de 1.250.000 visitantes, sendo o espaço cultural mais procurado em Portugal e um dos mais procurados do mundo, com pouco mais de 200m2.

O país que mais nos visita é Espanha, seguido de perto por Portugal, Estados Unidos, França e Brasil. No último ano, assistimos à entrada da Coreia do Sul no nosso top 5, um sinal do crescente interesse pela Livraria Lello, mas também do aumento da visitação de sul-coreanos ao Porto.

Mas há algo que nos enche de orgulho: os portugueses estão sempre entre os primeiros. Dependendo da época do ano, ocupam o segundo ou terceiro lugar, e, em determinados períodos, chegam mesmo a ser o maior grupo de visitantes. Saber que continuamos a ser um espaço de encontro para quem cá nasceu dá ainda mais sentido à nossa missão.

Quais são os livros mais raros ou valiosos que já passaram pela Livraria Lello?

Ao longo dos anos, muitos livros raros e valiosos passaram pela Livraria Lello, cada um com uma história que o toma único.

Entre os mais especiais, destacamos um incunábulo, uma obra do século XV que já recorria à técnica revolucionária da prensa, mas ainda mantinha iluminuras feitas à mão. Uma obra veneziana que marca uma fase de transição entre a tradição otomana e as inovações introduzidas pela imprensa.

Outro tesouro que passou pelas nossas mãos foram as cartas de amor de Bob Dylan – 42 cartas escritas pelo jovem Robert Zimmermann à sua namorada da adolescência. Para além das juras de amor próprias da idade, Dylan já revelava nelas o seu maior sonho: tomar-se um grande músico e vender um milhão de discos. Sabemos que ultrapassou essa meta muitas vezes, mas estas cartas mostram um lado íntimo e visionário de um artista que viria a marcar gerações.

Acreditamos que um livro não se mede apenas pelo seu valor de mercado, mas pela sua capacidade de preservar memórias e contar histórias – e estes são apenas dois exemplos de como a literatura e a memória se encontram entre as nossas prateleiras.

Que escritores e personalidades famosas já visitaram a livraria?

A Livraria Lello já recebeu presidentes e figuras de renome de várias partes do mundo. Alguns anunciaram a sua visita, outros foram discretos, descobertos apenas pelo olhar atento dos nossos livreiros.

Foi assim com Woody Allen e Harrison Ford, que passaram por aqui quase incógnitos, mas não escaparam à curiosidade de quem vive a livraria todos os dias.

Ao longo dos anos, já recebemos também grandes nomes da literatura, da música, do cinema e da arte, todos unidos pelo mesmo fascínio pelos livros e pelo que esta casa representa. A Livraria Lello é um espaço de encontro – e esse talvez seja o maior privilégio de quem aqui trabalha.

Que iniciativas ou eventos a livraria organiza para promover a literatura e a cultura?

A Livraria Lello tem uma programação cultural contínua e de acesso livre, que contribui para a nossa missão de pôr o mundo inteiro a ler, das mais variadas formas.

Organizamos exposições que aproximam os leitores de grandes obras e autores, como a que reuniu um conjunto de livros ilustrados por Miró ou a que revelou ao público o manuscrito original de Amor de Perdição.

Damos palco à literatura com lançamentos de livros e momentos de carreira, em particular na rubrica “Em Nome Próprio”, onde já recebemos Enrique Vila­ Matas, José Eduardo Agualusa, Lídia Jorge ou António Lobo Antunes, entre tantos outros.

A música também ocupa um lugar especial na livraria, com momentos musicais intimistas, muitas vezes comentados. O fado é um desses exemplos, até porque temos um fado próprio, escrito por Maria do Rosário Pedreira. A música esteve também presente na recente revelação da aquisição da coleção pessoal de Amy Winehouse, onde, em conversa com a banda original, revisitámos a sua obra e celebrámos a sua ligação aos livros.

E porque a cultura se expressa de múltiplas formas, promovemos ainda sketches teatrais e outros formatos inovadores que transformam a livraria num verdadeiro ponto de encontro das artes.

Quais são os elementos arquitetónicos e decorativos mais icónicos da Livraria e qual é o seu significado?

A Livraria Lello foi projetada por Francisco Xavier Esteves e distingue-se pela fusão entre o neogótico e a Art Nouveau, criando um espaço que é tanto um templo do livro como uma verdadeira obra de arte.

Entre os elementos mais icónicos, destaca-se a escadaria central, originalmente castanha. Somente em 1993, quando se realizaram obras de restauro, foi presenteada com a cor pela qual hoje é famosa. Um erro do empreiteiro que a pintou de carmim e assim ficou até hoje. Para além da sua forma escultural e do movimento quase fluído das suas curvas, é o coração da livraria, conduzindo os visitantes entre os diferentes espaços.

O vitral do teto, composto por 55 painéis de vidro colorido, é outro dos grandes ícones da livraria que carrega uma mensagem forte: a inscrição “Decus in Labore”, que significa “Dignidade no Trabalho”, um lema que reflete o espírito desta casa desde a sua fundação.

No interior há bustos que eternizam grandes nomes da literatura portuguesa, um tributo aos escritores que moldaram a nossa identidade literária, como Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz ou Guerra Junqueiro.

Estes elementos, tal como todos os detalhes arquitectónicos da Livraria Lello, não são meros adornos – são marcas do compromisso desta casa com a cultura e a literatura.

Qual foi a maior venda ou transação já feita na livraria?

Uma das maiores transações feita na Livraria Lello foi a venda de uma primeira edição de O Principezinho, uma obra que, por si só, já tem um valor de mercado elevado, mas que, neste caso, se tomou ainda mais especial: foi adquirida para ser oferecida num pedido de casamento.

Confesso que nos custou a vender, porque esta é uma obra que nos é muito querida. Mas, num contexto tão inesperado, não poderíamos dizer que não. A Sala Gemma tem edições disponíveis para venda, mas também guarda o nosso espólio – um conjunto de livros que consideramos património, não apenas da livraria, mas da literatura mundial.

Aqui, acolhemos verdadeiras joias da literatura. Entre edições especiais, livros­ objeto de tiragem limitada e primeiras edições raras, o livro assume uma nova dimensão. Deixa de ser apenas um veículo de leitura para se tomar um objeto de coleção, de investimento e, acima de tudo, de memória.

Tal como um vinho raro ou uma peça de arte, um livro pode conter histórias muito além daquelas que estão impressas nas suas páginas. E, muitas vezes, pode até ser o protagonista de momentos inesquecíveis – como foi o caso desta venda tão especial.